domingo, 7 de fevereiro de 2010
Nunca vi um lince
texto: manolo
foto: caoazul.com
Esta crónica, não pretendendo revestir-se de um carácter autobiográfico, retoma, no entanto, fragmentos da minha memória já longínqua. Se para uma narrativa de vida não me sinto neste momento preparado, não deixo de evocar os meus tempos de menino quando lia avidamente as apaixonantes aventuras de Tintin, em especial o «Tintin no Congo», ou, mais tarde, as proezas do corajoso capitão Blake e do sagaz professor Mortimer. Foram elas que me incutiram o gosto pela aventura, pela natureza e a vontade inabalável de conhecer o mundo. Haveria de ser o todo-o-terreno o veículo para a realização desses «sonhos-desejo», que se foram entranhando em mim, lentamente, envolvendo-me de tal modo que influenciaram determinantemente a minha personalidade.
Depois, já adulto, veio uma experiência épica com um Portaro de um amigo meu, apicultor, na Serra da Malcata, que me relatava as suas aventuras «no reino do lince» com um inexplicável brilhozinho nos olhos, já lá vão mais de trinta anos.
Chovia copiosamente, o meu amigo Rui preocupado com as suas colmeias e eu em fotografar, quem sabe, com um bocado de sorte, um lince. Nunca vi nenhum. Só os tinha visto embalsamados, «empalhados», em adegas da região, por cima da lareira de um notável da edilidade local " é um troféu de caça são raros", na casa dos guarda-florestais, no café central, na prateleira mais alta onde as garrafas de licor Beirão e as de Macieira exibem a sua disciplina perfilada e orgulho nacional face à timidez solitária de uma Vat 69. Na mesma prateleira onde, ao centro, está a moldura com o emblema do Benfica trabalhada em pequenos fragmentos de vidro e a figura em barro do Zé Povinho a fazer o manguito do «Queres fiado, Toma!», ladeadas de andorinhas pretas de Barcelos «coladas» à parede, pintada de um verde brilhante: e eu sem saber que se pintavam paredes daquela cor.
(Você vai tirar retratos aos gatos? Devia era levar uma caçadeira, esses ladrões comem-nos os coelhos todos)
Aquela noite revestiu-se de elementos notoriamente fantásticos, encandeando uma série de episódios estranhos e perturbantes, um número quase cabalístico de ficções e realidades que se me entranhou como um vírus. O poeta Fernando Pessoa dizia: «primeiro estranha-se, depois entranha-se». Agustina Bessa Luís chamou-lhe uma espécie de «vício de alma».
Chovia copiosamente.
(Você vai tirar retratos aos gatos? Com este vendaval? Tá bem tá)
Copiosamente. O melhor chefe de redacção que tive, o saudoso António Alçada Batista, «descompunha-me» quando utilizava esta forma obtusa de adjectivação.
(Você vai tirar retratos aos gatos? Chove a rodos, homem! Beba um bagacinho e fique aí, que hoje dá o Dallas. Zé, é hoje não é?)
O Zé, ao balcão, dizia que sim com a cabeça enquanto passava o pano pela pedra mármore preta, pingada de mágoas anónimas, euforias desconcertantes, ilusões e desilusões e outras bebidas.
Seguimos o conselho, mas não ficamos para ver o «JR» a preto e branco.
(Aquele bicho é mesmo ruim)
Já passava da meia-noite, serra adentro, o meu amigo explicava-me as potencialidades daquela segunda alavanca das mudanças, mais pequena, mais robusta, mais decisiva. O Portaro com caixa aberta de madeira conhecia os sítios mais recônditos da serra. Uma mãe javali escapava ao súbito luar dos faróis com um carreirinho de crias entre o matagal denso, quase impenetrável. A chuva intensificava-se e a Malcata vestia-se de breu, envolta em trevas, sombras frenéticas e sibilantes.
No olhar do meu amigo apicultor a angústia de perder abelhas-mestras, abelhas-obreiras e zangões. «Uma colmeia tombada...no Inverno perdem-se muitas abelhas»...e, num ápice, à nossa frente, num grande palco, que cena: um raio sobe (sim, os raios sobem, não caem) fulminante sentencia o enorme carvalho que protege o apiário, rachando-o ao meio, um estrondo, uma luz intensa, apocalíptica, pedaços de árvore, fragmentos de vidro, pedaços de colmeia. Há olhos de felideos cintilantes por todo o lado, que nos miram espantados de todas as direcções, garrafas que tremem nas prateleiras, andorinhas que se tranformam em morcegos, rainhas, operárias e zangões jazem sob a lama e a chuva cada vez mais intensa.
(Não te atrevas a escrever copiosamente)
Assustado o Portaro foge para a direita, resvala e cai num buraco dissimulado por uma urze. às voltas na labuta para o tirar do buraco, o meu amigo lembra-se de que dias antes se tinha esquecido ali, nquele mesmo local, junto às colmeias, de uma corda, «era uma corda grossa de marinheiro, temos de a encontrar, é a única safa que temos», gritava-me o Rui. A sua voz chegava-me trémula e interrompida pela cadência alternada das pequenas quedas e das tentativas de reequilíbrio para resistir à enxurrada que levava tudo o que encontrava à frente.
As buscas mostravam-se infrutíferas, desesperantes, os braços e os joelhos enterrados na lama, só já comunicava com o Rui, tal como as abelhas, através de toques, movimentos, sons e cheiros. Não nos ouvíamos. O cheiro a madeira queimada, os corpos molhados na enxurrada, sem forças, como as rainhas,operárias, zangões, quase como «linces empalhados»...
Subitamente, um brisa gélida, angustiada, atinge-nos o peito como uma lança, acompanhada de um fedor sulfuroso. Uma luz ténue surge do carvalho jazendo em cinzas, e desta ergue-se um vulto, um rosto magro de mulher de pela branca, quase transparente, manto branco, sem pés, que se desloca como se flutuasse. E nós, de joelhos, siderados...
- É ela!
- É ela quem, Rui? O que é que se passa aqui? Gritava eu, quase em silêncio.
(Ó diabo, você também viu a pequena? Tirou-lhe o retrato? Zé, estás ouvir isto?)
O Zé, ao balcão, dizia que não com a cabeça: " Não gosto de falar nisso. Tenho muito respeito por essas coisas"
O vulto deslocou-se para junto de umas pedras e iniciou um movimento circular. Tal como quando uma abelha quer informar as suas companheiras de colmeia que encontrou uma fonte rica em néctar ou pólen, inicia uma dança circular sobre a descoberta.
O Rui gatinha desesperamente na sua direcção, e à medida que se aproxima das pedras o vulto recua e esvaece-se até desaparecer por completo. O Rui tropeça na corda de marinheiro.
-Encontrámos a corda, foi ela!
- Rui explica-me isto. Quem é ela?
- Não sei, já ouvi falar qualquer coisa...parece que foi morta por um raio, não sei, vamo-nos.
(Ó diabo, você também viu a pequena?)
Perante a minha incredulidade, o meu amigo Rui prendia um pequeno tronco à roda da frente com a corda de marinheiro e, de cada vez que o Portaro progredia meia roda, desatava e tornava atar o tronco. Chegámos a casa já raiava o dia, o Portaro ficou a dormir no alpendre e nós, ficamos a contar um ao outro o que já sabiamos mas, nunca vi um lince.
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