sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Você não é de cá, pois não?

Texto e foto: Manolo


Budem zdorovi !
Na zdorovie!
Os russos, divididos em tribos espalhadas pelas mesas, bridam extasiados à saúde, ao sucesso, à riqueza e ao futuro. Na minha mesa, ao centro, a garrafa de vodka parece uma bola de cristal a adivinhar-me um um futuro incerto, numa viagem vertiginosa sem cinto de segurança nem seguro.
A multidão eufórica entoa um hino de sonoridades agudas, sibilante, estridente.
- Vai mais un copo? Só mais um! À saúde!
- À saúde de quê, de quem?
-Vai! Só mais um não faz mal, não és homem não és nada. Verdade tão irrefutável como a eficácia de um elixir para fazer crescer o cabelo.
Enquanto esta frase batida ressoa na minha cabeça, qual rajada de metralhadora nas paredes vazias de um convento, sinto os meus olhos como que a serem vomitados violentamente das órbitas. É hora de fugir. Pássaros negros rodopiam pelo salão chilreando estranhas cantilenas, as pessoas dançam de pernas para o ar, os copos grunhem como porcos, a entrada do salão aproxima-se e afasta-se num movimento brutal. «Pára, eu quero sair daqui!»
As bacantes tocam pandeiretas e a entrada do salão contorce-se como na dança do ventre. O meu ângulo de visão rende-se aos 45 graus alcoólicos daquela poção druídica, da qual já nada resta na bola de cristal, abandonada no centro da mesa, a sorrir para mim em tom desafiante: «Queres conhecer a minha irmã?»
Os degraus surgem de repente à minha frente como que vindos do nada, sabe-se lá porquê, uma infantaria medonha que apoia milhares de pás eólicas, qual força aérea que me quer decapitar, talvez, uma encomenda expressa de Éolo, o deus do vento, que me refresca a cara mas não evita que eu vá ao tapete na gélida neve.
As casas de Gromovo voam acrobaticamente e com a esteira de fumo que sai das suas chaminés, desenham estranhos sinais no céu, tão estranhos que não os consigo descodificar. A neve queima-me a face e o vapor gélido da noite acalenta-me a dormência, num vai e vem de vómitos ao encontro da deusa da raiva.
Quero gritar de fúria mas não consigo...mas o que eu quero mesmo é regressar ao passado, a St. Petersburgo, onde estive ontem bem quentinho na livraria Boukvoed, na avenida Nevsky Propekt, junto ao palácio de Inverno, perdido horas a fio num oceano de livros, a acariciar-lhe as lombadas, a beijar os títulos...mas não, estou aqui deitado na neve sem me conseguir levantar, qual manta velha enrolada, abandonada, num caos de refegos e volutas, massacrado por pesadelos.
A deusa ri-se de mim enquanto os meus orgãos, em sincronia, definham dentro de mim, Sinto-o.
A noite de repente fica silenciosa. Um grupo de mulheres, das cidades de Saratov e Volgograd, vem na minha direcção. Mulheres lindas, sedutoras cujos rostos alimentam o querer, o desejo, o impulso vital. O que verão em mim com os lábios e os dedos azuis e o gelo a consumir-me a roupa e a pele? O que quererão de mim? Mas é algo insubstancial, as belas mulheres das margens do Volga trespassam-me como um lençol de névoa densa, com se de uma ilha no meio do mar se tratasse, como o bêbado da minha rua -a da Esperança - deitado à chuva, rodeado de água por todos os lados, com o corpo cansado de pescador meio coberto de lixo da enxurrada e o seu fiel amigo, o «Bateira» a fazer jus ao epíteto de «fiel amigo», junto dele, como um farol, faça vento, chuva ou sol.
A minha rua - a da Esperança - também conhecida por rua do endireita, da casa dos caracóis, do Convento das Bernardas, do Chafarix, do José Saramago, viveu no 76 e eu no 28, ou do «Picaroço» o bêbado da minha rua.
Agonio exausto, mergulhado numa noite insegura. É fogo, queima-me, desfigura-me, é a desculpa do mundo ser tão feio, sem esperança, sem rua, sem cão. Será que Saramago se inspirou alguma vez no «Picaroço» para construir as suas personagens? Tantas as vezes o encontrou, aliás, tantas pessoas passaram por ele sem que ele desse por elas, qual ilha absorta, tal como eu agora, rodeado de cristais de neve cujos enfadonhos admiradores do belo defendem que em cada cristal, em cada floco, há a assinatura de deus.
Eu ali prostrado, mergulhado no meu próprio vómito.
As casas de Gromovo aterram, umas atrás das outras, com a cadência dos aviões no aeroporto de Frankfurt. À medida que a minha torre de controlo cardíaca desfalece as familias saem das casas, avós, pais, crianças, todos ao meu redor. Só vejo pernas...mal as vejo.
Só pode ser o céu. O inferno não é assim. Afinal o céu existe e é branco. É claro que estou no céu, no departamento celestial do Delirium Tremens, o forte odor a substâncias psicoativas, a luz, tudo leva a crer que sim. Um homem vestido de branco, as imagens e as formas destorcidas regressam à minha mente, à minha frente, vejo-o perfeitamente, cabelo de ouro, olhos azul safira, penetrantes, cruéis, parecendo julgar-me pelo meu rubor facial, pela minha ataxia e insufciência respiratóra. Fala de forma imperceptível mostrando-me os dentes de ouro.
É o druida! Este filho da puta não pára de me perseguir, está visto que este céu é dele e insiste na poção, agora adminsitra-me vodka nas veias, por via intravenosa o efeito é mais rápido, já não chega o que passei lá em baixo, maldito sejas!
- Você não é de cá, pois não? Ontem à noite esteve muito mal... dizia-me o homem de branco enquanto...enquanto ajustava o doseador da garrafa de soro.