texto e fotos:manolo
Sem deixar de olhar para a assistência, o pastor fechou com as duas mãos a Bíblia que estava sobre o leitoril e concluiu o sermão dizendo: «Deus seja louvado. Que Deus vos acompanhe. Em uníssono, e de forma melodiosa, a assistência respondeu: Ámen. Começou então a sair ordeiramente do velho barracão feito de tábuas de eucalipto e coberto por chapas onduladas, ferrugentas, transformado em lugar de culto. As crianças, vestindo roupas coloridas, aliviadas como o escape do vapor de uma panela de pressão, eufóricas, atropelam-se nas suas brincadeiras.
Um dos militares que se encontrava na última fila, cuja patente não consegui decifrar, sempre tive dificuldades em perceber as patentes militares, mas que me pareceu ser tenente e responsável pela brigada que nos acompanhará na escalada ao vulcão de Niragongo, disse-nos: «Agora já podemos ir e que Deus nos acompanhe!»
Lá fora, em frente à porta, estende-se um cemitério que mais parece um campo de feijão verde, tenro e viçoso. Os crentes que regressam a casa atravessavam-no por pequenos trilhos pedestres, entre campas e vagens. Não se percebe se se trata de uma plantação de feijão verde com campas e túmulos, se de um cemitério ajardinado com estas leguminosas. É certamente bem diferente dos modelos mais ou menos estereotipados a que estamos habituados e, pelas traquinices das crianças e pela boa disposição dos adultos, de fato domingueiro e Bíblia na mão, vê-se que a sua relação com a morte é mais tranquila, mais lógica, pelo menos mais prática: há, de facto, uma relação mais utilitária com os entes queridos ali enterrados, qual inesperado adubo de hortícolas domésticos.
De um lado, encostado ao muro de pedras sobrepostas que delimita o cemitério, está um «out-door» de uma ONG com uma ilustração naif, a qual incentiva a população a não pactuar com os violadores, não os encobrindo nem os protegendo a troco de qualquer suborno. Trata-se de uma pesada herança da guerra civil que parece não ter fim; do outro lado, um segundo «out-door» mais cuidado publicita uma marca de cerveja com um curioso slogan: «negócio de homens!»
Ali, no sopé do vulcão, espraia-se a cidade de Goma, que cresce à medida que os aldeãos das zonas rurais vão sendo escorraçados ou conseguem fugir dos grupos rebeldes que saqueiam as zonas rurais, regressando depois às montanhas onde se escondem e se constituem como autênticos exércitos.
Alcançar o cume do Niragongo é a nossa missão. A minha mulher e eu queríamos muito fazê-lo, pelo que para isso treinámos caminhando diariamente cerca de 9 quilómetros, em andamento adequado e amena e descontraída cavaqueira como nos sugeriu a médica de família. Estávamos preparados para alcançar um dos vulcões mais activos do planeta, que se encontra a mais de três mil metros de altitude. Não que tenhamos alma de vulcanólogo ou nervos de alpinista, nada disso, mas a subida à cratera de um vulcão activo é sempre algo fascinante: chegar ao cume, encarar de frente o lago trovejante é, sem dúvida, uma forma de realização pessoal.
A patrulha de militares, 9, juntou-se aos carregadores, 3, levando cada um, no minimo, 20 quilos; um deles, já com a sua carga sobre a cabeça ( garrafas de água, mantimentos, tenda...), ofereceu-se para me levar a mochila do material fotográfico. Amavelmente declinei a oferta.
Resolvidas algumas formalidades, segundo me apercebi de índole militar, o primeiro grupo de 4 Rangers embrenhou-se pela floresta dentro, por um trilho de pouca visibilidade e mato denso. O militar da frente levava um GPS Garmin Etrex na mão e todos transportavam metralhadoras Kalashnikov ao ombro. Cerca de um quarto de hora depois nós seguimo-los, igualmente a pé, com os restantes cinco militares e os três carregadores, por um trilho largo onde cabia um jipe; mas à medida que avançámos, cerca de 200 metros mais à frente este estreitou-se por entre a densa floresta. Seguíamos em fila indiana e o líder do grupo com uma catana ia cortando o matagal que teimava em esconder o trilho; seguia-se mais um militar, depois nós, a seguir os carregadores e, no final da lagartixa humana, os restantes militares.
Entre vários sons indecifráveis um silvo, um agitar brusco da vegetação, alguma apreensão e trocas de palavras, poucas, entre militares e carregadores; era perfeitamente perceptível o som do metal da catana a golpear os ramos e a nossa respiração cada vez mais ofegante. À medida que avançávamos, sempre a subir, o trilho tornava-se mais pétreo e enormes raízes atravessavam-no, escondidas pelo matagal, o que nos provocava pequenos desequilíbrios, pequenas quedas até, que mereciam algumas gargalhadas dos nossos protectores. Um dos carregadores desembainhou a sua catana e fez com ela duas varas de caminhar que nos ofereceu com um sorriso, o que melhorou a nossa caminhada. Descansávamos em zonas previstas pelos Rangers, e cada vez mais noutras a nosso pedido.
Depois de 4 horas e meio de caminho, numa das zonas previstas para o descanso, os carregadores colocaram a carga no chão e os militares sentaram-se no que geometricamente formava os cantos de um quadrado; nós, extenuados, sentámo-nos no seu interior. Eu fiz de um tronco tombado o meu assento e debrucei-me para beber água meditando ao mesmo tempo se me restariam forças para levar a cabo aquela ousada caminhada. Os militares trocavam entre si algumas palavras em tutsi, o seu dialecto, e eu, quase sem forças para levar a garrafa à boca, inferiorizado por não os compreender mas impressionado com a capacidade física daqueles homens, de mochila às costas, arma na mão e galochas de borracha, sorria.
Estava eu às voltas com os meus pensamentos, e com os apontamentos também, tentando esquecer-me das fortes dores nos joelhos, quando uma ensurdecedora rajada de metralhadora fez estrondo nos céus; num ápice uma ordem troante mandou-nos deitar de barriga para baixo. Seguiu-se uma segunda rajada, uma terceira, e logo mais duas ou três. A minha mulher prostrada à minha frente, eu, desesperado, rastejei até junto dela e apertei-lhe fortemente a mão como se a intensidade daquele aperto fosse por si só uma linguagem e ela percebesse tudo o que lhe queria dizer naquele momento. O seu olhar terno mas intenso tranquilizava-me, a minha “cara de Inverno”, como ternamente lhe chamo, acalentava-me ; e a sua mão apertada na minha, como nos hieróglifos egípcios em que a deusa concede o seu poder, a sua força e a sua coragem, a um súbdito, dava-me ânimo.
Momentos mais tarde pairava um estranho silêncio e os militares e carregadores, já todos de pé, imóveis, músculos tensos, com alguns gestos reveladores de um certo nervosismo e um olhar fixo e circunspecto, olhavam para o céu como se dele esperassem um sinal divino. Um dos militares proferiu então algumas palavras, quase imperceptíveis, e o resto do grupo descontraiu-se. Um dos carregadores fez-nos um sinal com a cabeça, curto, afirmativo, de que tudo estava bem.
Poucos minutos depois, passadas as emoções daquele momento, prosseguimos e fomos ao encontro dos nossos companheiros que iam na frente, que tinham sido atacados por um pequeno grupo, provavelmente, de uma das forças rebeldes «Mai-Mai», escondidas nas montanhas do norte do Kivu. Empurrados pela fome, circundam as zonas protegidas à procura de comida. Nessa deambulação abatem todo o tipo de animais, inclusive os gorilas, para saciar a fome. Por vezes estes ataques não passam de uma medição de forças, para sentirem o pulso ao inimigo, mas nem sempre as coisas acabam bem.
Estes rebeldes oriundos, na sua maioria, do vizinho Ruanda reivindicam o que dizem ser os seus direitos através do pânico que espalham entre as populações com roubos, violações e assassinatos. Nos últimos dois anos mais de 150 destes Rangers foram assassinados nesta zona «quente» da República Democrática do Congo por estes grupos de rebeldes liderados por homens sem escrúpulos e sanguinários, para quem a democracia se mede pelo poderio militar, pelo terror e repressão.
Volvida hora e meia de caminhada avistámos o cume do vulcão Niragongo, mas alcançá-lo não se mostrava tarefa fácil. Havia uma «estrada» de lava solta com cerca de 300 metros até ao cume, mas com uma inclinação excessiva para as nossas capacidades físicas. Arrastámo-nos praticamente de gatas, com as pedras a fugirem por debaixo dos nossos corpos, o que nos obrigava a retroceder, a escorregar, contra a nossa vontade. Os carregadores passaram tranquilamente à nossa frente. Passámos por algumas fissuras que emitiam lava e, à medida que nos aproximávamos do cume, o ar tornava-se cada vez mais quente e o cheiro a enxofre mais intenso e sufocante. Quando, finalmente, lá conseguimos chegar já os carregadores tinham montado as tendas, inclusive a nossa, e nos esperavam com um sorriso triunfante. Abraçámo-nos todos!
No centro, contido no interior de um cone vulcânico gigante em forma de uma tigela de sopa, podia desfrutar-se de uma visão deslumbrante e inesquecível: um lago de lava activa, a mais de 950ºC, rugia como um avião em descolagem ao mesmo tempo que explodia em repuxos fascinantes de tons de laranja eléctrico. O lago tinha vida! Bombeava, expandia-se, contraía-se, subia e descia, numa movimentação tão bela quanto aterradora. Ficámos tão hipnotizados que nem nos demos conta da chuva torrencial e do vento forte que nos fustigavam.
Durante a noite, em conversa com o tenente, o único que falava inglês, perguntei-lhe quanto ganhava para fazer aquele trabalho. Respondeu-me que 50 dólares mensais. Perplexo, repeti: 50 dólares?
(No hotel banal onde me hospedara, na avenue de la Corniche, em Goma, eu pagava 75 dólares diários).
Perante a minha perplexidade, o militar, meio atrapalhado, justificou-se: «Ganhamos mais porque corremos riscos!»
(Estivemos na região em Outubro de 2010, desde então fomos informados pelos nossos contactos que dois destes militares que nos acompanharam ao Nirarongo haviam sucumbido num ataque de um grupo rebelde).