terça-feira, 20 de outubro de 2009

«Mulheres,sabe como são as mulheres...»


Num francês incompreensível misturado com crioulo, o homem discute ao telemóvel. Percebo que a conversa é sobre dinheiro e, quando se referem verbas, o homem exalta-se, gesticula, afasta o telemóvel da orelha, olha para ele e grita, irritadíssimo.


Estou na fronteira de Wassadou, no Senegal. A divisão entre o Senegal, por uma pista de terra vermelha, lindíssima, com cerca de 4 quilómetros, e a fronteira guineense de Pirada é feita por uma corrente entre dois pequenos pilares de cimento e pela boa vontade deste homem. Quando se cala para ouvir o seu interlocutor - que parece ser uma mulher - o guarda fronteiriço fita-me de alto a baixo, com um olhar de poucos amigos, para logo virar costas e recomeçar a gritaria. Pressinto que não cheguei na melhor altura.


O Iveco Daily 4x4 está praticamente encostado à corrente que liga os dois pilares de cimento. Ao lado, o «escritório» do posto fronteiriço é composto por uma cobertura, duas cadeiras azuis de plástico, a secretária é um tronco de árvore cortada e, como «sala de espera» outro tronco, este maior e deitado, onde está sentado um jovem que observa o guarda de olhos arregalados.


Eu, ali especado com os passaportes e o famigerado «passe-avant» nas mãos, anseio pelo desfecho da discussão e, confesso, não sei o que se passa mas estou do lado dele. No meio da gritaria cada vez mais estridente, o guarda faz-me sinal para recuar o carro e, quase em simultâneo, para parar. Recuei talvez um metro e, agora, parece que estou cada vez mais longe.


Regresso à minha posição de assistente especado que presencia os arrufos do casal. O guarda está completamente fora de si, dá um pontapé numa lata velha de concentrado de tomate e esta não acerta no jovem que está sentado por um triz. As escleróticas dos seus olhos perdem a «brancura» amarelada e ficam vermelhas de raiva devido à dilatação dos vasos sanguíneos. Começo a ficar nervoso, pressinto que não cheguei na melhor altura.


O homem, que parece ter mais de cinquenta anos, é pouco formal no uniforme cor de areia, usa um chapéu de palha estilo colonial marcado pelo suor, amuletos coloridos ao pescoço, ostenta uma dentadura em ruínas e a sua ira exterioriza-se numa mistura estranha de brados e de catarro. Transforma cigarros em beatas à velocidade da luz, o suor escorre-lhe no rosto em cascata e, a ver pelo seu estado de fúria, o fluído é de muitas octanas. Não me atrevo a acalmá-lo. É um barril de pólvora na iminência de explodir. Agora anda às voltas numa espiral vertiginosa. O jovem levanta-se, e eu, especado e impávido, quiçá como a mulher de Ló transformada em estátua de sal às portas de Sodoma.


De repente, o guarda afasta o telefone da orelha, olha para ele, junta-o à boca, arregala os olhos e, com os dentes cerrados, pronuncia algo imperceptível ao mesmo tempo que o arremessa violentamente; este não se desfaz no chão porque o jovem protagoniza a defesa da tarde.


Silêncio na fronteira, no céu e na terra. O guarda afasta-se uns metros, o jovem continua com os olhos arregalados mas com o telefone na mão, e eu, siderado, tenho a certeza que não cheguei na melhor altura.


O guarda passa um lenço amarrotado e encardido pela cara enquanto segue na direcção do «escritório» e, com um aceno de mão, manda-me aproximar e diz-me: - excusez-moi monsieur, les femmes, monsieur, les femmes...vous savez. Ao mesmo tempo cospe na almofada de carimbo e timbra com a força da sua autoridade os nosso passaportes. Retribuo-lhe o comentário: - é preciso ter calma, sabe com são as mulheres, não é?

- Calma? Imagine que tenho 6 mulheres a quem sempre dei tudo, arroz, feijão, milho...e agora resolveram unir-se para me fazerem reivindicações, imagine o senhor.

- Realmente não imagino, disse eu.


O guarda manda o jovem abrir a corrente e pergunta-me: - não se importa de levar este moço até ao outro lado (Guiné) ? Desejo-lhe uma boa viagem e uma óptima estadia.

Quando chegámos a Pirada, pergunto ao moço: -onde é que queres ficar? Num português incompreensível, misturado com crioulo, responde-me: - fico aqui, tenho aqui uma cabra.

Texto e foto:Manolo

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O homenzinho da caixa de madeira


No pico da duna, deitado ao lado da minha inseparável companheira das noites de luar, a minha própria sombra, contemplava deslumbrado o céu de Msieb tatuado de estrelas cintilantes, vigiadas pro uma lua apaixonante.


Um homenzinho baixote, coberto do pescoço aos pés com a gandoura, de rosto seco e ossudo lembrando uma caveira, mas coberto de barbas , um olho vazio e dentes cavalares e amarelados, com uma caixa de madeira debaixo do braço aproximou-se e perguntou-me: - Gosta do meu deserto? Perplexo, respondi-lhe que sim, confirmando ao mesmo tempo com a cabeça. Então baixou-se, aproximou-se ainda mais de mim e pude sentir o impacto desagradável de uma forte halitose, valha-me deus, como se o fétido odor da morte se tratasse. Levantei-me de repente, ele, em bicos dos pés, arregalou o olho - a órbita vazia parecia a cratera de um vulcão em carne viva -, esboçou um sorriso cínico e sussurrou-me: - O deserto é a lâmpada mágica que liberta a alma.

Reconheci imeditamente o aforismo de Ibraim Al Koni e, antes de lhe perguntar quem era e o que fazia ali, num passo largo que agitava a gandoura, desapareceu para lá das dunas levando consigo a caixa de madeira debaixo do braço. Nunca mais o vi.


Moahmed, com o bule na mão e um copo na outra, deitava chá de menta de uma certa altura, alternadamente, de um lado para o outro. Repete o gesto diversas vezes e, perante a minha perplexidade, pergunta-me: - Há algum problema?

- Não, respondi-lhe, estive ali a conversar com um homenzinho...

- Com uma caixa de madeira debaixo do braço? Afaste-se dele! Esse desgraçado trás a morte com ele, mas nunca mais morre, tem mais de cem anos. Diz-se que foi o braço direito de Zaid Ouskounti, o último lider tribal a render-se aos franceses, em 1933. No dia em que foi feito prisioneiro cuspiu na cara de um sargento francês, este, raivoso, esvaziou-lhe o olho com a baioneta do fuzil. Desde então considerado um herói, jurou vingar-se...

- E como é que trás a morte consigo? Perguntei eu.

- Não sei, se calhar é ele a própria morte, mas afaste-se dele, por Alá! Dizem que na caixa que trás debaixo do braço guarda sempre o coração «enfarinhado» em areia da sua última vítima.

Explicou Moahmed, olhando para todos os lados como se estivesse a ser observado pela...pelo homenzinho da caixa de madeira, enquanto repunha chá no velho púcaro azul de esmalte.


Confrontei-me então com a morte? Perguntei a mim próprio . Sempre pensei que a morte fosse mulher e tivesse como fiel companheira uma gadanha fria e silenciosa. Saramago, no seu livro «intermitências da morte» , descreve-a nestes termos: « uma senhora morte como se quer, capaz de fazer tremer o chão debaixo dos pés, com a mortalha a arrastar levantando fumo a cada passo». Esta sim, é uma morte elegante, com personalidade, não uma morte zarolha e mal cheirosa que me arrancava o coração e o «enfarinhava em areia» , para o guardar dentro de uma caixa de madeira.


Mas, tinha chegado a minha hora. Prisioneiro dos grilhões das trevas que me arrastavam para as profundezas, chegava o irrevogável e improrrogável fim da minha existência. Eu lutava, não queria: ténues tentativas frustradas de liberdade. Sentia frio, o corpo gelava e as pontas dos dedos estavam azuladas como o velho púcaro de esmalte. O bafo do homenzinho da caixa de madeira envenenava a minha existência. Estava escrito, e o que está escrito tem muita força, já não era só o fétido odor da morte, já sentia a própria baba da morte, o coração «enfarinhado», aquela luz branca, e gritei...


-Então pá, adomecestes nas dunas? Quando demos por ti estava um camelo a lamber-te a cara, ainda nos fartámos de rir, o João até tirou umas fotografias...

Estremunhado, olhei ao redor: toda a gente se ria, Moahmed parecia uma criança a rir-se enquanto me estendia um chá num velho púcaro de esmalte azul.
Texto: Manolo
Foto: Luís Almeida

Do outro lado


Há mais de uma semana que não sabíamos o que era uma cama «a sério». Quando chegámos ao hotel, se lhe podemos chamar assim, a burocracia do «check-in» parecia interminável. De um lado nós, com a peculiar impaciência europeia, do outro lado o recepcionista, com todo o tempo do mundo.


A nossa viagem tinha sido emocionante, mas muito cansativa; estávamos completamente absorvidos pelo supremo objectivo de chegar ao quarto, tomar banho e dormir. Mas não era fácil. O recepcionista não desarmava e, num tom bastante delicado e pousado, perguntava um a um de onde vínhamos, se tínhamos feito boa viagem, que num dos sítios por onde passámos tinha lá um primo que já não via há muitos anos...bla, blá...blá, blá e mais blá, blá.


Enquanto o recepcionista mauritano praticava o seu francês, nós, completamente alheios ao magnifico entardecer , apressávamos o transbordo dos sacos sempre acompanhados daquela familiar auréola de pó que nos acompanhava desde o início.


O ar estava impregnado de perfumes exóticos. Os jacarandás, as roseiras e as buganvílias, tal como no poema de Jonh Hopkins, não nos deixavam ver, mas ouviamos o burburinho dos vendedores ambulantes e os gritos da crianças que vinham do outro lado, do lado da realidade desconcertante.


De repente, e do meio das buganvílias, surgiu um míudo, talvez com 10 ou 12 anos, que num francês perfeito perguntou: «precisam de um guia para vos mostrar todos os encantos desta terra abençoada por Alá?» A forma delicada como fez a pergunta desconcertou-nos. Ficamos estáticos a olhar para ele e, sem que disséssemos fosse o que fosse, retorquiu: «vejo que ainda não se instalaram, posso voltar mais tarde, descancem e sejam bem-vindos», desaparecendo em seguida entre as buganvílias, para o outro lado, o lado da realidade desconcertante.


Depois do jantar (leia-se: nosso jantar) o míudo apareceu e renovou o convite. Nós aceitamos. Chamava-se Aziz, tinha 12 anos e nasceu no Níger. Veio para a Mauritânia com o pai, que acabaria por desaparecer no mar. Nunca conheceu a mãe. Era um sobrevivente da realidade desconcertante.


De mão dada com a miséria, foi arrastado até Kiffa, sabe-se lá porquê. Era um miudo esguio, seco como uma cana, olhos enormes e brilhantes. Repetia com orgulho que tinha um amigo muito importante nos ralis. Num «Paris-Dakar» tinha conhecido, nem mais nem menos, que um senhor chamado Henri Pescarolo, um gigante do deporto automóvel. Aliás, a partir daí, o piloto francês enviava-lhe com alguma frequência roupas e livros.


Aziz gostava muito de ler e tinha uma apetência mutio especial para linguas. Falava francês, inglês, italiano, castelhano e arranhava o alemão.

Foi uma noite muito agradável, embora tívessemos sido verdadeiramente «bombardeados» com perguntas sobre Portugal: Aziz era ávido de conhecimento. Ficámos amigos. No final, perguntei-lhe quanto lhe devia.

- Rien Monsieur

- Nada? O que é que te posso oferecer?

Aziz esboçou um sorriso e, meio envergonhado, respondeu: - ofereça-me o colete que tem ali no jipe.

- O colete? O meu colete de estimação? N...Naquele momento o meu egoísmo ia-me traindo, mas não podia desapontar aquele novo amigo. Fui ao jipe, «despi-me» do meu egoísmo mesquinho, abri mão do colete e ofereci-lho.


Estávamos em 1991, decorria o épico «Paris-Dakar» com início em África, em Tripoli, atravessando o resto da Libia, o Níger, o Mali e a Mauritânia, para terminar em Dakar, no Senegal. Os finlandeses Ari Vatanen e Berglund preparavam-se para vencer, pela terceira vez consecutiva, a mítica maratona, agora com o portentoso Citroen ZX. Nas motos assistia-se à consagração de um jovem piloto, cheio de talento, chamado Stéphane Peterhansel. Para trás ficava a morte de Charles Cabanne, piloto de um camião de assistência da equipa Citroen, vítima mortal de um estúpido acidente nas «malditas» pistas do Niger.


Cerca de um década mais tarde, em 2002, estava eu a beber uma Sagres (contrabandeada pelos pescadores portugueses que fainam na costa mauritana) na esplanada do hotel Mercure, em Nouakchott, quando alguém se aproximou e me disse, quase em segredo, que o director do hotel queria falar comigo.

-Comigo?

Assenti e, quando entrei no escritório, cumprimentei-o que, com um sorriso jovial, exclamou: - é mesmo você! Não me reconhece?

Encolhi os ombros e sorri. O director apontou para uma moldura pendurada na parede, ao lado da foto do Pescarolo. Estremeci. O meu colete!

-Aziz! Exclamei com os olhos «cheios de mar».

- Sim, sou o Aziz Akar! Lembra-se de mim? Eu estava do outro lado e passei as buganvílias para falar consigo, recorda-se?



Texto e foto: Manolo

As minhas botas


As minhas botas são «umas» Camel Guatemala. Modelo que pouco tem a ver com a filosofia actual da marca, aliás, que não me interessa sequer abordar, nem tem nada a ver com esta história.

O que realmente vos quero transmitir é que tenho, confesso, uma relação mais ou menos adventícia com as minhas botas. Uma paixão pode-se transformar em amor ou não, mas mesmo que perca a sua chama flamejante, resta quase sempre uma grande amizade, cumplicidade, sentido de protecção intrínseco, é o que se passa com as minhas botas.


Há anos que estas botas me suportam, me guiam e protegem. Hoje, olho para elas e vejo-as gastas, a sola perdeu a maioria do rasto, o couro apresenta alguns danos irreparáveis, cortes e raspões, «rugas» desenhada pelo tempo e pela aventura que, apesar de tudo, lhes dão um charme incontornável. Estão mais bonitas do que no dia em que chegaram às minhas mãos, naquela enorme caixa.


O «Tio Avertino» um experiente sapateiro de Mafra já lhe deu uns «pontitos», adoptando uma atitude digna de um «cirurgião». Fez questão de me pôr a par da «operação» quantos pontos deu, a forma e porquê. " Tem aqui botas para mais uns aninhos". Fiquei aliviado.


Companheiras inseparáveis, recordo, sucintamente, alguns episódios que vivemos juntos, como aquele que protagonizamos na Lousã e que resultou na fractura de duas costelas. Ou então, aquele em 1998, quando fui vitima de um grave acidente na Libia, e já sob o efeito da morfina, apelei aos meus companheiros- que me despiam no hospital - que não me perdessem as botas. Recordo que um deles comentou: "... este gajo está todo partido e está preocupado com a m...das botas". Ou então ainda, quando fui ao Rali do Dubai e a Alitalia, inexplicavelmente, perdeu a minha bagagem. Mais de uma semana sem saber do meu saco, mais de uma semana que vivi com a agonia de nunca mais ver aquele par de botas.

Confesso que nunca as tratei como mereciam. Nunca lhes dei a atenção devida. Que me recorde, só uma ou duas vezes é que as lavei e espalhei «Dubbin» aquele creme especial para couros, que tão bem lhe faz.


Andarilhas, pápa-léguas, as minhas botas estiveram sempre comigo, nos quatro cantos do mundo. Em condições adversas e inópitas: alagadas; sobe neve; na lama; nas grandes altitudes; nos glaciares. Partilharam comigo os medos e os receios, as tristezas e as alegrias que as grandes expedições proporcionam. Já serviram de «caixa-forte» e de travesseiro ao mesmo tempo. Jogamos à bola quando estive no campo de refugiados da Frente Polisário, na Argélia, já corri seca e meca com elas.

Quando entro num hotel, olham-nas de soslaio, como se fossem marginais. Olhares oblíquos, preconceituosos e incrédulos que ignoro, até com uma certa vaidade.


Quando chego a casa, as minhas botas não podem entrar. " O lugar delas é na garagem" É na garagem que elas «dormem» entre os jerrykans e a caixa das cintas, onde esperam por mim uns «crocks» meio abixanados para a troca. Antes de correr a porta da garagem, lanço-lhes um último olhar. Talvez uma forma de agradecer...Elas, as minhas botas, parecem dizer: vai lá que nós ficamos bem".

Texto e foto: Manolo