Num francês incompreensível misturado com crioulo, o homem discute ao telemóvel. Percebo que a conversa é sobre dinheiro e, quando se referem verbas, o homem exalta-se, gesticula, afasta o telemóvel da orelha, olha para ele e grita, irritadíssimo.
Estou na fronteira de Wassadou, no Senegal. A divisão entre o Senegal, por uma pista de terra vermelha, lindíssima, com cerca de 4 quilómetros, e a fronteira guineense de Pirada é feita por uma corrente entre dois pequenos pilares de cimento e pela boa vontade deste homem. Quando se cala para ouvir o seu interlocutor - que parece ser uma mulher - o guarda fronteiriço fita-me de alto a baixo, com um olhar de poucos amigos, para logo virar costas e recomeçar a gritaria. Pressinto que não cheguei na melhor altura.
O Iveco Daily 4x4 está praticamente encostado à corrente que liga os dois pilares de cimento. Ao lado, o «escritório» do posto fronteiriço é composto por uma cobertura, duas cadeiras azuis de plástico, a secretária é um tronco de árvore cortada e, como «sala de espera» outro tronco, este maior e deitado, onde está sentado um jovem que observa o guarda de olhos arregalados.
Eu, ali especado com os passaportes e o famigerado «passe-avant» nas mãos, anseio pelo desfecho da discussão e, confesso, não sei o que se passa mas estou do lado dele. No meio da gritaria cada vez mais estridente, o guarda faz-me sinal para recuar o carro e, quase em simultâneo, para parar. Recuei talvez um metro e, agora, parece que estou cada vez mais longe.
Regresso à minha posição de assistente especado que presencia os arrufos do casal. O guarda está completamente fora de si, dá um pontapé numa lata velha de concentrado de tomate e esta não acerta no jovem que está sentado por um triz. As escleróticas dos seus olhos perdem a «brancura» amarelada e ficam vermelhas de raiva devido à dilatação dos vasos sanguíneos. Começo a ficar nervoso, pressinto que não cheguei na melhor altura.
O homem, que parece ter mais de cinquenta anos, é pouco formal no uniforme cor de areia, usa um chapéu de palha estilo colonial marcado pelo suor, amuletos coloridos ao pescoço, ostenta uma dentadura em ruínas e a sua ira exterioriza-se numa mistura estranha de brados e de catarro. Transforma cigarros em beatas à velocidade da luz, o suor escorre-lhe no rosto em cascata e, a ver pelo seu estado de fúria, o fluído é de muitas octanas. Não me atrevo a acalmá-lo. É um barril de pólvora na iminência de explodir. Agora anda às voltas numa espiral vertiginosa. O jovem levanta-se, e eu, especado e impávido, quiçá como a mulher de Ló transformada em estátua de sal às portas de Sodoma.
De repente, o guarda afasta o telefone da orelha, olha para ele, junta-o à boca, arregala os olhos e, com os dentes cerrados, pronuncia algo imperceptível ao mesmo tempo que o arremessa violentamente; este não se desfaz no chão porque o jovem protagoniza a defesa da tarde.
Silêncio na fronteira, no céu e na terra. O guarda afasta-se uns metros, o jovem continua com os olhos arregalados mas com o telefone na mão, e eu, siderado, tenho a certeza que não cheguei na melhor altura.
O guarda passa um lenço amarrotado e encardido pela cara enquanto segue na direcção do «escritório» e, com um aceno de mão, manda-me aproximar e diz-me: - excusez-moi monsieur, les femmes, monsieur, les femmes...vous savez. Ao mesmo tempo cospe na almofada de carimbo e timbra com a força da sua autoridade os nosso passaportes. Retribuo-lhe o comentário: - é preciso ter calma, sabe com são as mulheres, não é?
- Calma? Imagine que tenho 6 mulheres a quem sempre dei tudo, arroz, feijão, milho...e agora resolveram unir-se para me fazerem reivindicações, imagine o senhor.
- Realmente não imagino, disse eu.
O guarda manda o jovem abrir a corrente e pergunta-me: - não se importa de levar este moço até ao outro lado (Guiné) ? Desejo-lhe uma boa viagem e uma óptima estadia.
Quando chegámos a Pirada, pergunto ao moço: -onde é que queres ficar? Num português incompreensível, misturado com crioulo, responde-me: - fico aqui, tenho aqui uma cabra.
Texto e foto:Manolo