No pico da duna, deitado ao lado da minha inseparável companheira das noites de luar, a minha própria sombra, contemplava deslumbrado o céu de Msieb tatuado de estrelas cintilantes, vigiadas pro uma lua apaixonante.
Um homenzinho baixote, coberto do pescoço aos pés com a gandoura, de rosto seco e ossudo lembrando uma caveira, mas coberto de barbas , um olho vazio e dentes cavalares e amarelados, com uma caixa de madeira debaixo do braço aproximou-se e perguntou-me: - Gosta do meu deserto? Perplexo, respondi-lhe que sim, confirmando ao mesmo tempo com a cabeça. Então baixou-se, aproximou-se ainda mais de mim e pude sentir o impacto desagradável de uma forte halitose, valha-me deus, como se o fétido odor da morte se tratasse. Levantei-me de repente, ele, em bicos dos pés, arregalou o olho - a órbita vazia parecia a cratera de um vulcão em carne viva -, esboçou um sorriso cínico e sussurrou-me: - O deserto é a lâmpada mágica que liberta a alma.
Reconheci imeditamente o aforismo de Ibraim Al Koni e, antes de lhe perguntar quem era e o que fazia ali, num passo largo que agitava a gandoura, desapareceu para lá das dunas levando consigo a caixa de madeira debaixo do braço. Nunca mais o vi.
Moahmed, com o bule na mão e um copo na outra, deitava chá de menta de uma certa altura, alternadamente, de um lado para o outro. Repete o gesto diversas vezes e, perante a minha perplexidade, pergunta-me: - Há algum problema?
- Não, respondi-lhe, estive ali a conversar com um homenzinho...
- Com uma caixa de madeira debaixo do braço? Afaste-se dele! Esse desgraçado trás a morte com ele, mas nunca mais morre, tem mais de cem anos. Diz-se que foi o braço direito de Zaid Ouskounti, o último lider tribal a render-se aos franceses, em 1933. No dia em que foi feito prisioneiro cuspiu na cara de um sargento francês, este, raivoso, esvaziou-lhe o olho com a baioneta do fuzil. Desde então considerado um herói, jurou vingar-se...
- E como é que trás a morte consigo? Perguntei eu.
- Não sei, se calhar é ele a própria morte, mas afaste-se dele, por Alá! Dizem que na caixa que trás debaixo do braço guarda sempre o coração «enfarinhado» em areia da sua última vítima.
Explicou Moahmed, olhando para todos os lados como se estivesse a ser observado pela...pelo homenzinho da caixa de madeira, enquanto repunha chá no velho púcaro azul de esmalte.
Confrontei-me então com a morte? Perguntei a mim próprio . Sempre pensei que a morte fosse mulher e tivesse como fiel companheira uma gadanha fria e silenciosa. Saramago, no seu livro «intermitências da morte» , descreve-a nestes termos: « uma senhora morte como se quer, capaz de fazer tremer o chão debaixo dos pés, com a mortalha a arrastar levantando fumo a cada passo». Esta sim, é uma morte elegante, com personalidade, não uma morte zarolha e mal cheirosa que me arrancava o coração e o «enfarinhava em areia» , para o guardar dentro de uma caixa de madeira.
Mas, tinha chegado a minha hora. Prisioneiro dos grilhões das trevas que me arrastavam para as profundezas, chegava o irrevogável e improrrogável fim da minha existência. Eu lutava, não queria: ténues tentativas frustradas de liberdade. Sentia frio, o corpo gelava e as pontas dos dedos estavam azuladas como o velho púcaro de esmalte. O bafo do homenzinho da caixa de madeira envenenava a minha existência. Estava escrito, e o que está escrito tem muita força, já não era só o fétido odor da morte, já sentia a própria baba da morte, o coração «enfarinhado», aquela luz branca, e gritei...
-Então pá, adomecestes nas dunas? Quando demos por ti estava um camelo a lamber-te a cara, ainda nos fartámos de rir, o João até tirou umas fotografias...
Estremunhado, olhei ao redor: toda a gente se ria, Moahmed parecia uma criança a rir-se enquanto me estendia um chá num velho púcaro de esmalte azul.
Texto: Manolo
Foto: Luís Almeida
«O deserto é a lâmpada mágica que liberta a alma.» Será também uma paixão partilhada!
ResponderExcluirParabéns Manolo