segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Do outro lado


Há mais de uma semana que não sabíamos o que era uma cama «a sério». Quando chegámos ao hotel, se lhe podemos chamar assim, a burocracia do «check-in» parecia interminável. De um lado nós, com a peculiar impaciência europeia, do outro lado o recepcionista, com todo o tempo do mundo.


A nossa viagem tinha sido emocionante, mas muito cansativa; estávamos completamente absorvidos pelo supremo objectivo de chegar ao quarto, tomar banho e dormir. Mas não era fácil. O recepcionista não desarmava e, num tom bastante delicado e pousado, perguntava um a um de onde vínhamos, se tínhamos feito boa viagem, que num dos sítios por onde passámos tinha lá um primo que já não via há muitos anos...bla, blá...blá, blá e mais blá, blá.


Enquanto o recepcionista mauritano praticava o seu francês, nós, completamente alheios ao magnifico entardecer , apressávamos o transbordo dos sacos sempre acompanhados daquela familiar auréola de pó que nos acompanhava desde o início.


O ar estava impregnado de perfumes exóticos. Os jacarandás, as roseiras e as buganvílias, tal como no poema de Jonh Hopkins, não nos deixavam ver, mas ouviamos o burburinho dos vendedores ambulantes e os gritos da crianças que vinham do outro lado, do lado da realidade desconcertante.


De repente, e do meio das buganvílias, surgiu um míudo, talvez com 10 ou 12 anos, que num francês perfeito perguntou: «precisam de um guia para vos mostrar todos os encantos desta terra abençoada por Alá?» A forma delicada como fez a pergunta desconcertou-nos. Ficamos estáticos a olhar para ele e, sem que disséssemos fosse o que fosse, retorquiu: «vejo que ainda não se instalaram, posso voltar mais tarde, descancem e sejam bem-vindos», desaparecendo em seguida entre as buganvílias, para o outro lado, o lado da realidade desconcertante.


Depois do jantar (leia-se: nosso jantar) o míudo apareceu e renovou o convite. Nós aceitamos. Chamava-se Aziz, tinha 12 anos e nasceu no Níger. Veio para a Mauritânia com o pai, que acabaria por desaparecer no mar. Nunca conheceu a mãe. Era um sobrevivente da realidade desconcertante.


De mão dada com a miséria, foi arrastado até Kiffa, sabe-se lá porquê. Era um miudo esguio, seco como uma cana, olhos enormes e brilhantes. Repetia com orgulho que tinha um amigo muito importante nos ralis. Num «Paris-Dakar» tinha conhecido, nem mais nem menos, que um senhor chamado Henri Pescarolo, um gigante do deporto automóvel. Aliás, a partir daí, o piloto francês enviava-lhe com alguma frequência roupas e livros.


Aziz gostava muito de ler e tinha uma apetência mutio especial para linguas. Falava francês, inglês, italiano, castelhano e arranhava o alemão.

Foi uma noite muito agradável, embora tívessemos sido verdadeiramente «bombardeados» com perguntas sobre Portugal: Aziz era ávido de conhecimento. Ficámos amigos. No final, perguntei-lhe quanto lhe devia.

- Rien Monsieur

- Nada? O que é que te posso oferecer?

Aziz esboçou um sorriso e, meio envergonhado, respondeu: - ofereça-me o colete que tem ali no jipe.

- O colete? O meu colete de estimação? N...Naquele momento o meu egoísmo ia-me traindo, mas não podia desapontar aquele novo amigo. Fui ao jipe, «despi-me» do meu egoísmo mesquinho, abri mão do colete e ofereci-lho.


Estávamos em 1991, decorria o épico «Paris-Dakar» com início em África, em Tripoli, atravessando o resto da Libia, o Níger, o Mali e a Mauritânia, para terminar em Dakar, no Senegal. Os finlandeses Ari Vatanen e Berglund preparavam-se para vencer, pela terceira vez consecutiva, a mítica maratona, agora com o portentoso Citroen ZX. Nas motos assistia-se à consagração de um jovem piloto, cheio de talento, chamado Stéphane Peterhansel. Para trás ficava a morte de Charles Cabanne, piloto de um camião de assistência da equipa Citroen, vítima mortal de um estúpido acidente nas «malditas» pistas do Niger.


Cerca de um década mais tarde, em 2002, estava eu a beber uma Sagres (contrabandeada pelos pescadores portugueses que fainam na costa mauritana) na esplanada do hotel Mercure, em Nouakchott, quando alguém se aproximou e me disse, quase em segredo, que o director do hotel queria falar comigo.

-Comigo?

Assenti e, quando entrei no escritório, cumprimentei-o que, com um sorriso jovial, exclamou: - é mesmo você! Não me reconhece?

Encolhi os ombros e sorri. O director apontou para uma moldura pendurada na parede, ao lado da foto do Pescarolo. Estremeci. O meu colete!

-Aziz! Exclamei com os olhos «cheios de mar».

- Sim, sou o Aziz Akar! Lembra-se de mim? Eu estava do outro lado e passei as buganvílias para falar consigo, recorda-se?



Texto e foto: Manolo

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