segunda-feira, 19 de outubro de 2009

As minhas botas


As minhas botas são «umas» Camel Guatemala. Modelo que pouco tem a ver com a filosofia actual da marca, aliás, que não me interessa sequer abordar, nem tem nada a ver com esta história.

O que realmente vos quero transmitir é que tenho, confesso, uma relação mais ou menos adventícia com as minhas botas. Uma paixão pode-se transformar em amor ou não, mas mesmo que perca a sua chama flamejante, resta quase sempre uma grande amizade, cumplicidade, sentido de protecção intrínseco, é o que se passa com as minhas botas.


Há anos que estas botas me suportam, me guiam e protegem. Hoje, olho para elas e vejo-as gastas, a sola perdeu a maioria do rasto, o couro apresenta alguns danos irreparáveis, cortes e raspões, «rugas» desenhada pelo tempo e pela aventura que, apesar de tudo, lhes dão um charme incontornável. Estão mais bonitas do que no dia em que chegaram às minhas mãos, naquela enorme caixa.


O «Tio Avertino» um experiente sapateiro de Mafra já lhe deu uns «pontitos», adoptando uma atitude digna de um «cirurgião». Fez questão de me pôr a par da «operação» quantos pontos deu, a forma e porquê. " Tem aqui botas para mais uns aninhos". Fiquei aliviado.


Companheiras inseparáveis, recordo, sucintamente, alguns episódios que vivemos juntos, como aquele que protagonizamos na Lousã e que resultou na fractura de duas costelas. Ou então, aquele em 1998, quando fui vitima de um grave acidente na Libia, e já sob o efeito da morfina, apelei aos meus companheiros- que me despiam no hospital - que não me perdessem as botas. Recordo que um deles comentou: "... este gajo está todo partido e está preocupado com a m...das botas". Ou então ainda, quando fui ao Rali do Dubai e a Alitalia, inexplicavelmente, perdeu a minha bagagem. Mais de uma semana sem saber do meu saco, mais de uma semana que vivi com a agonia de nunca mais ver aquele par de botas.

Confesso que nunca as tratei como mereciam. Nunca lhes dei a atenção devida. Que me recorde, só uma ou duas vezes é que as lavei e espalhei «Dubbin» aquele creme especial para couros, que tão bem lhe faz.


Andarilhas, pápa-léguas, as minhas botas estiveram sempre comigo, nos quatro cantos do mundo. Em condições adversas e inópitas: alagadas; sobe neve; na lama; nas grandes altitudes; nos glaciares. Partilharam comigo os medos e os receios, as tristezas e as alegrias que as grandes expedições proporcionam. Já serviram de «caixa-forte» e de travesseiro ao mesmo tempo. Jogamos à bola quando estive no campo de refugiados da Frente Polisário, na Argélia, já corri seca e meca com elas.

Quando entro num hotel, olham-nas de soslaio, como se fossem marginais. Olhares oblíquos, preconceituosos e incrédulos que ignoro, até com uma certa vaidade.


Quando chego a casa, as minhas botas não podem entrar. " O lugar delas é na garagem" É na garagem que elas «dormem» entre os jerrykans e a caixa das cintas, onde esperam por mim uns «crocks» meio abixanados para a troca. Antes de correr a porta da garagem, lanço-lhes um último olhar. Talvez uma forma de agradecer...Elas, as minhas botas, parecem dizer: vai lá que nós ficamos bem".

Texto e foto: Manolo

Um comentário:

  1. Temos várias paixões na vida, é bem verdade... e algumas inexplicáveis ou até muito bem explicadas como é o caso.Mas, não menospezes os «crocks» abixanados que também devem sentir a tua falta e, se calhar, alguma inveja quando vais para as tuas viagens com as ditas botas e eles cá...sózinhos à tua espera ...

    Parabéns pelo blog, vou estando atenta
    beijos à Glória
    AM-ana martins

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