sábado, 17 de outubro de 2009

O Major


O major senta-se numa velha caixa de madeira. Num gesto quase mítico acende um «puro» sem deixar de se fixar na ululação dos ventos que fustigam as dunas. Mistérios, segredos indesvendáveis da natureza. Os contornos boleados das dunas, qual corpo de mulher, adquirem formas sensuais e exaltantes.


- Há aqui um ar de eternidade...incrível, parecendo ainda possível alguma intimidade com Deus. Observa o major com a voz ofuscada pela comoção.

Aaminah ajoelhou-se, apoiou os braços nas suas pernas e murmurou-lhe num tom doce, quase mudo: - Deus vive aqui.

Aaminah é uma mulher muito atrente: pescoço comprido, carapinha rente, olhos grandes, faiscantes de desejo, cheios de «longe», lábios grossos e divinamente desenhados, seios firmes, não muito grandes mas espetados, ancas boleadas abaixo da fina cintura: um corpo «cheio de Africa».


O major aparenta quarenta e muitos anos. Vida sem passado nem história, passageiro do mundo, de aspecto cerdoso, bochechas gordas, onde sobressaem as enormes aranhas vasculares, olhos azuis embaciados, cabelo liso e fino que sobra, já branco-chumbo sobre o colarinho da camisa, que parece ter nascido com ele.

Não se sabe se esteve nalgum exército, nem tampouco fala disso, não gosta de falar disso; as suas histórias são vagas e quase nunca chegam ao fim. A única coisa que se sabe é que uma forte paixão, recíproca, levou-o a raptar Aaminah no Níger, à revelia da familia cujos membros, soa de aldeia em aldeia, o perseguem pelas areias quentes do Erg, possessos de ódio, dizendo à boca cheia que não descansam enquanto não o desventrarem.


Ao longe, uma «parede» de pó agiganta-se ao mesmo tempo que se aproxima. Calmamente, o major estira o monóculo: «são jipes que se aproximam». A fumaça do «puro» divide-se no rosto bonito de Aaminah que, assustada, corre para a «pick-up» para se vestir. Uma túnica tão diáfana que permite que se lhe vejam as formas extremamente bem proporcionadas do corpo.

-Talvez nos ajudem. Gritou a jovem.

- Talvez...Retorquiu o amante ao mesmo tempo que deu alguns passos em direcção aos veículos que se aproximavam. Expedicionários do vento com matricula portuguesa.


A «pick-up» do major tem problemas: «o freio do selector da caixa de velocidades está solto, esclarece o «Viking», o nosso mecânico.

- Resolve-se? Pergunta o major expectante.

- Vamos tentar. Tranquiliza-o o mecânico.


Num ápice, e com um bocado de cinta, a velha «pick-up» está pronta a prolongar a fuga da paixão perseguida. O major agradece e oferece-nos um chá.

A noite está fria e a lua «grávida». Sento-me junto ao major e ofereço-lhe um Montecristo, no «ponto».

- Deve ser muito dificil para um jornalista ou até para um escritor descrever toda esta beleza inebriante. Aliás, um jornalista é um escritor menor, não concorda? Não reajo à provocação. O major não dá por falta da resposta e, com o olhar, procura incessantemente Aaminah.

Os meus olhos também a perseguem , mas o meu pensamento fixa-se no do major. Dificil descrever o deserto? O deserto é realmente indescritível! Um imenso mar de areia é tudo o que os olhos alcançam. Dos meus, lacrimosos, à linha do horizonte, é tão longe que é impossivel alcançá-la; ao mesmo tempo tão perto que parece estar ali, ao alcance da mão.


Aaminah aproxima-se de nós, ofereço-lhe um Porto. Estendo-lhe a garrafinha de peito. Admiro aqueles lábios carnudos a encostarem-se com ternura e, ao mesmo tempo com intensidade ao gargalo de metal, enquanto os seus olhos me observam «cheios de perto»...a noite está divina.


Na manhã seguinte seguimos juntos até Ghat, que fervilha de vida e de cor com o seu mercado. Aaminah está feliz. Regateia com entusiasmo o preço dos tomates, tãmaras, laranjas, hortelã... . O major, cauteloso, informa-se acerca da familia de Aaminah. «Andarão por perto?» Um negociante de camelos afirma ter visto, lá para os lados do lago Mandara, «um grupo de pretos reivindicando vingança sobre um bandido branco que lhe teria raptado a irmã».


Despedimo-nos. Aaminah ficou de novo com os olhos «cheios de longe». O major parece resignar-se. Três dias depois tenho um acidente e sou internado no hospital de Nalou. Um médico egípcio, que se habituou a telefonar para casa com o meu telefone satélite que estava na mesa-de-cabeceira em metal, diz-me: Esta semana já é o segundo estrangeiro que entra aqui. Você teve sorte. Ontem, chegou cá um completamnte desventrado, muita falta de sangue, paragem cardíaca, não pudemos fazer nada...parece que era militar.

- E a rapariga?

- Rapariga? Não vinha nenhuma rapariga com ele. Dá-me licença que telefone para casa?

Texto e foto: Manolo

Nenhum comentário:

Postar um comentário