O branco da roupagem ofusca-me o olhar.
Serenamente, como um velho ascensor, soergo a cabeça e, com o olhar acompanho aquele enorme vulto, impávido, que me observa das alturas.
Levanto-me, aceno-lhe com a cabeça em sinal de cumprimento e estendo-lhe a mão. Num gesto rápido toca a sua mão na minha.
-Shalam
-Shalam. Respondo-lhe.
O homem que está à minha frente é alto, bigode denso, olhos negros e pequenos. Mal lhe vejo o rosto porque o Chech (peça de musselina que serve para enrolar à volta da cabeça) tapa-lhe a cara, mas dá para ver, pelos sulcos e refegos, que estou perante um homem que ronda os cinquenta e poucos anos.
Encontro-me - ou pelo menos penso que sim - na fralda do Erg Mourzouk, em pleno deserto libio, a pouco mais de 100 quilómetros da aldeia mais próxima, Tajarhi. Alguns dias antes, não sei quantos, perdi-lhe a conta, saí de Ghat com o objectivo de navegar pelo deserto. Ventos intempestivos retardaram a minha navegação. O destino levou-me, contrariado, até à orla do Mourzouk.
A certo momento da minha rota optei, ou melhor, fui obrigado a rumar para sul, As barkanes (dunas crescentes) dificultaram a minha progressão. O excesso de peso, a temperatura, a «fornalha» do pico do Sol que descolora o céu abatendo-se numa caícula infernal sob os pés, não dão tréguas.
O GPS avariado, «quem te avisa teu amigo é, leva dois». Optei por trazer apenas um e, com ele «fora de combate», perdi-me. Dou comigo em terra de ninguém, provavelmente nas planuras do Níger. Não encontei a temida máfia, mas temo o banditismo, grupos armados que percorrem a região com o intuito de pilharem (razzias) os camiões de emigrantes que regressam da Líbia. Neste contexto a solidão do deserto revela-se uma óptima companhia, ao mesmo tempo que «mergulho» em reflexões ambíguas.
A longíqua linha do horizonte cerca-me, avalio as hipóteses de sobreviência, abro os braços para o céu e peço ajuda a Deus, seja ele quem for.
Os motivo que me trouxeram até aqui, agora não têm a mínima importância, esqueci-os, tornaram-se insignificantes: minusculos grãos de areia perante tanta e cruel beleza.
À noite é mais difícil, a comichão não me deixa dormir: uma mordidela de um «piolho de camelo», vulgo carraça, ferrou-me sem apelo nem agravo a perna direita quando me cruzei com um mehari (caravana de mercadores). Tento combater a dor com o que tenho à mão: «Disoderme» e algum, muito pouco, «Bushmills».
Um curioso feneco (animal semelhante à raposa, embora mais pequeno, e com enormes orelhas) acompanha-me há três dias. Partilho algumas migalhas com o bicho. Esta partilha cria uma cumplicidade entre nós. Nunca se aproxima demasiado, observa-me à distância, como se partilhasse a minha sobrevivência. Claro que neste caso o animal é vitorioso, e eu derrotado, de qualquer maneira estamos unidos.
Um fim de tarde, tentei uma aproximação com a única maçã que me restava. Eriçou as orelhas, avançou e recuou. Sem dar um passo que fosse, lancei-lhe o fruto com suavidade que rolou até muito perto de si. Sem deixar de me fixar, a «raposa do deserto» trincou-o e desapareceu entre as dunas.
Sozinho de novo, anseio por alcançar de alguma forma Tajarhi, ou outra aldeia qualquer, tudo serve. A «pick-up» resiste mas, o combustível não é muito. Se tudo correr bem consigo fazer os 100 quilómetros em dois ou três dias.
Foram três longos dias. Continuo perdido e a comichão agora é visivel através de um inchaço com muito mau aspecto. Tenho dois litros de água; duas latas de atum; um pacote de bolachas e um «fundinho de Bushmills». Deve faltar pouco. Vou beber o último trago e dormir; amanhã prosseguirei o meu instinto com base nos parcos conhecimentos de pura navegação.
A manhã está cinzenta, sopra um vento que me bombardeia com milhões de minúsculas «balas» de areia. À pressa, arremeço tudo para dentro da «pick-up» e tento progredir. Faço-o por pouco mais de um quilómetro e desisto, paro e aguardo que a fúria da natureza se acalme. A tempestade de areia é passageira e rápida e de novo cá estou eu, mais uma vez, sob o braseiro saariano e enterrado até aos cabelos. Caí numa zona de fesh-fesh (um tipo de areias movediças, mas secas). Pego na pá e começo a cavar junto às rodas. A frescura de uma sombra abate-se sobre as minhas costas...
O homem sorri, ajoelha-se e, com os braços, afasta a areia que está debaixo dos eixos. Feliz, corro energicamente com a pá para o ajudar mas, ao mesmo tempo, pega-me no braço e com a outra mão faz-me sinal para ter calma; simultaneamente aponta para o Sol.
O crepúsculo avança. é a hora bendita do deserto. Bohammama é alto, bigode denso, olhos pretos e pequenos, cabelo grisalho e ostentoso. O tuaregue convida-me para jantar. Depois de uma massa apetitosa, com pão cozido alí à minha frente, é a hora do chá, o chá da amizade: «o primeiro bebe-se amargo, como a vida, o segundo doce, como o amor, o terceiro suave, como a morte».
A noite está divina, a Via Láctea mais cintilante que nunca. Boahammama também vai para Tajarhi. Pergunto-lhe: - quantos quilómetros faltam?
- Cerca de 250...
Antes de me fechar no saco-cama, não resisto à tentação e faço-lhe nova pergunta: - como me encontraste?
- Foi uma raposa que me avisou. Dorme bem.
Texto: Manolo
Foto: Jorge Cunha
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