terça-feira, 13 de outubro de 2009

Perfect Day


República Democrática do Congo. Desde Goma que o estóico Galloper se queixava da «má vida» que lhe tinham dado. Um vida dura, sem revisões, mudança de filtros, reapertos, enfim, sem nenhum tipo de manutenção. Os manómetros não funcionavam, a suspensão há muito que se tinha esquecido das suas funções e o motor revelava uma arritmia como se o seu «nó sinusal» não conseguisse estimular o «coração». «Gasta um pouco de óleo, mas chega lá» dizia-nos o moço do «rent-a-car»à porta do Hotel Lhusi, enquanto «emborcava» o terceiro litro de óleo no malfadado Galloper. Adivinhávamos uma viagem muito agitada até às entranhas das montanhas do Virunga, onde Emmanuel de Merode, director do WildlifeDirect, estava à nossa espera para nos guiar a esse mundo magnífico dos gorilas, no Parque Nacional de Virunga.


No dia anterior tinhamos voado num velho Antonov de Kinshasa para Goma. De início pretendíamos atravessar o território congolês de jipe, mas o meu estimado amigo e camarada de trabalho da Invicta, Rui Newnann, correspondente em África da PNN (Portuguese News Network), habituado aos cenários de risco, foi muito claro: «via Uganda por terra nunca, devido a um movimento pouco simpático autodeterminado «Exército do Senhor», que gosta muito pouco de brancos, não te metas nisso».


Para alcançar o objectivo «bastavam» apenas cerca de 300 km através da segunda maior floresta tropical do mundo, só superada pela Amazónia. No entanto, não sei porquê, eu estava preocupado e tu...sorrias.

As mochilas, o telefone satélite, dois pacotes de bolachas rançosas, três garrafas de água, uma confiança cega no GPS e algumas notas de 1 dólar, pois é sempre preciso subornar alguém. Na boa tradição decretada por Mobutu «torna-se válido para todos os congoleses o artigo 7º, ou seja,...desenrasquem-se!», era este o nosso principal equipamento. Ultrapassados os trâmites legais, e os menos legais, entranhámo-nos na floresta do ex-Congo Belga e ex-Zaire. Queriamos chegar ao fim da tarde ao primeiro posto do Virunga, no Parque Nacional, o primeiro a ser criado em 1925 e decretado património da Humanidade em 1979, onde continuam a ser dizimados gorilas a um ritmo inacreditável, o que coloca a espécie em vias de extinção.


A beleza que os nossos olhos rasos de água alcançavam aprisionou-nos de deslumbramento. Rendidos completamente ao fascínio da floresta tropical, não nos apercebemos que o Galloper começava a agonizar. Estávamos mais ou menos a 85 km do ponto de chegada, senti alguma prisão do motor e, pelo sim, pelo não, resolvi parar e verificar o nível do óleo: completamente seco. Nada que eu não tivesse já pensado, mas tu sorrias e dizias que ia correr tudo bem. Se os manómetros funcionassem já há muito que se teriam queixado. Com muito esforço avancei apenas alguns metros para junto de uma pequena clareira, ao lado do trilho de onde se vislumbrava, num vale a cerca de 300 metros, uma cachoeira cujas águas se perpetuavam num lago enorme. Não havia nada a fazer. Como que encantados pela luxuriante vegetação, demos as mãos e passeámos como namorados em Central Park. Os pássaros e o estremecer violento das folhas das árvores provocado pelo saracoteio dos chimpanzés mais curiosos não te causavam receio, mas a hipótese de encontrarmos um réptil causava-te apreensão; e eu sentia a tua mão apertar a minha com mais força.

Tentamos entrar em contacto com Emmanuel de Merode através do Iridium, sem êxito, a ligação estava péssima, não havia sinal. Vasculhei o Galloper todo na esperança de encontrar uma lata de óleo, mesmo que fosse daquele a granel para camiões que o moço do «rent-a-car» deitou pela «goela abaixo» do motor de primeira geração Mitsubishi. Nada!

Fazia muito calor e apetecia-nos mergulhar nas águas do lago, mas a prudência é sempre boa conselheira; entrar nos rios e nos lagos deste país é interpretado como suicidio, os hipopótamos, por exemplo, são os animais que matam mais gente.


Tentámos de novo entrar em contacto com Emmanuel De Merode. «Estão atrasados? Perderam-se?» Depois de lhe explicar o sucedido e de lhe ter passado as nossas coordenadas, deu uma gargalhada: «tudo bem, nós vamos aí buscá-los e rebocamos o jipe se for necessário. Tenham cuidado, não se aproximem dos rios, mantenham-se calmos, Não tarda nada estaremos aí.»

A noite estava quente, no chão corriam, aqui e ali, fios de água que, encorpando-se, formavam uma teia complexa , diminuta e peculiar que abastece os córregos, os rios e os lagos num ritual milenar. Escolhemos um local mais seco e começámos a preparar a nossa ceia. Sobre enormes folhas verdes colocámos as bolachas e, como se impunha, tratei de abrir a água com o ritual como se de um excelente Douro se tratasse. Repartimos as bolachas com beijos e a atmosfera parecia impregnada de uma paz avassaladora. De vez em quando ouvíamos berros ululantes e grunhidos de gorilas, ora agudos ora suaves. Quedos, fitávam-nos olhos nos olhos e dizias: «é longe», e beijavas-me. O perfume das flores, das folhas, dos caules e dos bambus tranquilizava-nos. Era o perfume do nosso amor. Ouvimos vezes sem conta «Perfect Day» , de Lou Reed, a única música que tinha no telemóvel; viestes morar no meu corpo. Saciámos a sede de desejo e, por cima dos nossos corpos molhados, um candelabro de pirilampos iluminava a nossa paixão enquanto «Perfect Day» ecoava, floresta adentro: «Oh it's such a perfect day / I'm glad I spent it with you / Oh such a perfect day / You just keep me hanging on...You just keep me hanging on...»


Antes do romper da aurora fomos repentinamente acordados pelo roncar de um potente motor. Estremunhados, escondemo-nos na floresta quase impenetrável e ficamos em silêncio com receio que fosse um grupo de rebeldes. Um enorme camião Deutz parou junto ao Galloper e, para nosso gáudio, vimos sair Emmanuel de Merode que se desfez em mil desculpas. « Só de madrugada é que conseguimos este camião. Peço mil vezes perdão por deixá-los tanto tempo aqui sózinhos, à mercê dos perigos da floresta. Meu Deus, estão assustados? E a senhora, que chatice...». Enquanto Nogbobo, o mecânico, pigmeu da tribo Mbuti, «emborcava» mais uns litros de óleo no desventurado Galloper, e Emmanuel de Merode se desfazia mais uma vez em mil desculpas, nós olhámo-nos nos olhos, sorrimos, e nos nosso lábios podia ler-se, em silêncio: «Perfect Day».

Texto: Manolo
Foto: Pablo Moreira. UNESCO

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