sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Bazungu






Texto e fotos: Manolo
Local das fotos: Bukima e Goma. RD Congo.


Entrei na palhota de telhado de colmo contornando um peixe seco pendurado, que me surgiu repentinamente na cara, qual espanta-espíritos.


O ancião estendeu a esteira de esparto, levou algum tempo a sentar-se nela, respirou fundo, sorriu, bateu com a mão firme no chão de terra seca que expeliu pequenos suspiros de pó e disse: «Bazungu (branco) senta-te aqui junto a mim». Acedi. Sentei-me na extremidade da esteira e uma fresta de luz que se escapulia pelos buracos da parede, feita de argila e de canas de bambu, resplandecia sobre a minha cara como um holofote numa tramóia teatral; mal via o meu interlocutor , que se encontrava na parte mais recôndita da cabana, numa penumbra quase impenetrável. Ao meu lado um recipiente de casca de abóbora seca estava repleto de vagens de feijão-verde. O silêncio estava imóvel.


- Mandaste-me chamar? Conheces-me? Perguntei para quebrar aquele silêncio que, sem saber porquê, me angustiava. Receava que aquele homem à minha frente estivesse ali uma eternidade a olhar para mim sem nada dizer.
- Conheço-te, és o único bazungu que anda a pé pelas ruas de Goma. Em Goma, o bazungu não se mistura com o mweusi (preto). O que é que procuras?
- Sou um viajante.
- Para viajar basta existir. Retorquiu o ancião, parafraseando Fernando Pessoa, o que me deixou mais perplexo. Ainda por cima, numa linguagem cuja semântica parecia uma mistura fina de português e de francês, com uma pitada de crioulo.

- Como te chamas? Perguntei.
-Henry Carhakubwa. Bazungu, sabes o que significa Carhakubwa? Limitei-me a dizer que não com a cabeça e o ancião continuou. Carhakubwa significa árvore flexível, que não cai com o vento, mas não é verdade. Estou como o milenar embondeiro que vai ser cortado para se fazer uma estrada nova.

- Henry, que idade tens?
- Muito tempo. Já passei por muitos tempos: tempo de fome, de colheitas, de perca, de ganho, de guerra, de sofrimento, de amor, de doença, de sol, de chuva, de doce e de amargo, demasiados tempos. Se eu te dissesse que tinha 110 anos respondias-me que era muito tempo, se eu te dissesse que tinha 70 anos respondias-me que ainda era novo. Vós, os bazungus, sois reféns do tempo. O tempo foi uma invenção da morte.


-Tens medo da morte? Desafiei-o.
Tenho medo é da mentira. Aos africanos é a quem mais se mente. Maltratados pelos próprios governantes, difamados pelas agências internacionais, iludidos pelas instituições de solidariedade, roubados na sua inocência pelos evangelizadores; até as organizações não-governamentais lhes dão falsas esperanças, o que ainda é pior. E de que forma reagem? Arrastam os pés, tentam emigrar, pedem, suplicam ou exigem dinheiro com a insolência de quem a ele tem direito, porque aqui, bazungu também é sinónimo de dinheiro; já reparaste que as crianças de manhã não te dizem «good-morning», dizem-te «good-money». Roubar a dignidade da pessoa é a melhor maneira de a manipular.


Os bazungu, aqui em Goma, deslocam-se de jipe de casa para o trabalho, depois para o restaurante, de novo para o trabalho, finalmente para casa. Andam num circuito fechado, têm medo, cheira-lhes a morte, mas convivem bem com a mentira. E tu? No meio dos pretos, nas ruas que fedem, nas encruzilhadas da sobrevivência, o que procuras?
- Só conhecendo podemos aprender a respeitar as diferenças, respondi-lhe, e, sem o deixar ripostar, perguntei-lhe: como é que falas tão bem português?

Por um espaço de tempo (já não me atrevo a quantificar) o silêncio voltou a ficar imóvel. A noite caía sobre a aldeia de Bukima, a escuridão ganhava um tom avermelhado e no ar pairava o cheiro dos braseiros. Do meio da púrpura, Henry começou a falar.

- Em 9 de Novembro de 1955 comecei a trabalhar nos Caminhos-de-ferro de Benguela, nos carregamentos de cobre que vinham do Katanga, era uma quarta-feira. Foi aí que conheci portugueses e comecei aprender...
- 9 de Novembro de 1955? Foi o dia em que eu nasci, que coincidência! Atalhei com os olhos esbugalhados.

- Coincidência? Bazungu, não há coincidências. Existe um provérbio africano que diz: o estrangeiro só vê aquilo que sabe. Tudo na vida tem um significado, não podemos parar o destino nem o dominó das consequências. É tão certo como o tempo em que não chegamos à próxima Primavera.

A conversa ia longa e eu estava a mais de 2 horas de jipe de Goma. Despedi-me de Henry, dizendo-lhe que na manhã seguinte regressaria a Bukima para ir ao Virunga fotografar os gorilas e continuarmos a nossa conversa, talvez ele me revelasse porque me mandou chamar.

- Amanhã? Bazungu, amanhã, já estarei a viver de outra maneira.

O regresso ao hotel foi de sobressalto, sentia a garganta seca. Durante a noite a imagem de Henry Carhakubwa queimava-me os olhos, a chuva torrencial alimentava-me o pesadelo. E como se fosse telepatia, ouvia a sua voz rouca, qual cantor de blues numa mistura fina de português e de francês com uma pitada de crioulo; lá estava, clara e cristalina como a água da montanha, dentro da minha cabeça.

(- Amanhã? Bazungu, amanhã, já estarei a viver de outra maneira).

(- Não há coincidências...não podemos parar o dominó das consequências).

Pouco passava das 5 horas da manhã, ainda o dia se espreguiçava, quando saí de Goma de regresso a Bukima; passei a enfadonha barreira de controlo, a seguir à estrada do aeroporto, deixei o trilho do vulcão Nyiragongo à esquerda e segui a pista de barro vermelho, passando por aldeias de palhotas com telhados de colmo e de chapa ondulada ferrugenta. Cruzei-me àquela hora com mulheres carregadas de bananas e de filhos às costas, cruzei-me com as «tchikudu» (as pesadas trotinetas de madeira, de tracção humana, que transportavam legumes e cana-de-açucar para o mercado de Goma), vi crianças em algazarra com uniforme escolar, camiões lotados onde as pessoas se misturam e confundem com os haveres, outros com capacetes azuis.

Quando cheguei à palhota de Henry Carhakubwa havia várias mulheres em pranto. Um caixão envolto em tecido escarlate, com cornucópias era carregado por alguns jovens. Num dos lados do caixão, e em dialecto Tutsi, lia-se uma frase feita com caricas de Fanta, de Coca-Cola e de cerveja Primus. Lacrimejando e com a garganta seca, perguntei a um dos jovens o que queria dizer aquela frase. Em francês, respondeu-me:

«Em África, quando um velho morre é uma biblioteca que arde.»




sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Você não é de cá, pois não?

Texto e foto: Manolo


Budem zdorovi !
Na zdorovie!
Os russos, divididos em tribos espalhadas pelas mesas, bridam extasiados à saúde, ao sucesso, à riqueza e ao futuro. Na minha mesa, ao centro, a garrafa de vodka parece uma bola de cristal a adivinhar-me um um futuro incerto, numa viagem vertiginosa sem cinto de segurança nem seguro.
A multidão eufórica entoa um hino de sonoridades agudas, sibilante, estridente.
- Vai mais un copo? Só mais um! À saúde!
- À saúde de quê, de quem?
-Vai! Só mais um não faz mal, não és homem não és nada. Verdade tão irrefutável como a eficácia de um elixir para fazer crescer o cabelo.
Enquanto esta frase batida ressoa na minha cabeça, qual rajada de metralhadora nas paredes vazias de um convento, sinto os meus olhos como que a serem vomitados violentamente das órbitas. É hora de fugir. Pássaros negros rodopiam pelo salão chilreando estranhas cantilenas, as pessoas dançam de pernas para o ar, os copos grunhem como porcos, a entrada do salão aproxima-se e afasta-se num movimento brutal. «Pára, eu quero sair daqui!»
As bacantes tocam pandeiretas e a entrada do salão contorce-se como na dança do ventre. O meu ângulo de visão rende-se aos 45 graus alcoólicos daquela poção druídica, da qual já nada resta na bola de cristal, abandonada no centro da mesa, a sorrir para mim em tom desafiante: «Queres conhecer a minha irmã?»
Os degraus surgem de repente à minha frente como que vindos do nada, sabe-se lá porquê, uma infantaria medonha que apoia milhares de pás eólicas, qual força aérea que me quer decapitar, talvez, uma encomenda expressa de Éolo, o deus do vento, que me refresca a cara mas não evita que eu vá ao tapete na gélida neve.
As casas de Gromovo voam acrobaticamente e com a esteira de fumo que sai das suas chaminés, desenham estranhos sinais no céu, tão estranhos que não os consigo descodificar. A neve queima-me a face e o vapor gélido da noite acalenta-me a dormência, num vai e vem de vómitos ao encontro da deusa da raiva.
Quero gritar de fúria mas não consigo...mas o que eu quero mesmo é regressar ao passado, a St. Petersburgo, onde estive ontem bem quentinho na livraria Boukvoed, na avenida Nevsky Propekt, junto ao palácio de Inverno, perdido horas a fio num oceano de livros, a acariciar-lhe as lombadas, a beijar os títulos...mas não, estou aqui deitado na neve sem me conseguir levantar, qual manta velha enrolada, abandonada, num caos de refegos e volutas, massacrado por pesadelos.
A deusa ri-se de mim enquanto os meus orgãos, em sincronia, definham dentro de mim, Sinto-o.
A noite de repente fica silenciosa. Um grupo de mulheres, das cidades de Saratov e Volgograd, vem na minha direcção. Mulheres lindas, sedutoras cujos rostos alimentam o querer, o desejo, o impulso vital. O que verão em mim com os lábios e os dedos azuis e o gelo a consumir-me a roupa e a pele? O que quererão de mim? Mas é algo insubstancial, as belas mulheres das margens do Volga trespassam-me como um lençol de névoa densa, com se de uma ilha no meio do mar se tratasse, como o bêbado da minha rua -a da Esperança - deitado à chuva, rodeado de água por todos os lados, com o corpo cansado de pescador meio coberto de lixo da enxurrada e o seu fiel amigo, o «Bateira» a fazer jus ao epíteto de «fiel amigo», junto dele, como um farol, faça vento, chuva ou sol.
A minha rua - a da Esperança - também conhecida por rua do endireita, da casa dos caracóis, do Convento das Bernardas, do Chafarix, do José Saramago, viveu no 76 e eu no 28, ou do «Picaroço» o bêbado da minha rua.
Agonio exausto, mergulhado numa noite insegura. É fogo, queima-me, desfigura-me, é a desculpa do mundo ser tão feio, sem esperança, sem rua, sem cão. Será que Saramago se inspirou alguma vez no «Picaroço» para construir as suas personagens? Tantas as vezes o encontrou, aliás, tantas pessoas passaram por ele sem que ele desse por elas, qual ilha absorta, tal como eu agora, rodeado de cristais de neve cujos enfadonhos admiradores do belo defendem que em cada cristal, em cada floco, há a assinatura de deus.
Eu ali prostrado, mergulhado no meu próprio vómito.
As casas de Gromovo aterram, umas atrás das outras, com a cadência dos aviões no aeroporto de Frankfurt. À medida que a minha torre de controlo cardíaca desfalece as familias saem das casas, avós, pais, crianças, todos ao meu redor. Só vejo pernas...mal as vejo.
Só pode ser o céu. O inferno não é assim. Afinal o céu existe e é branco. É claro que estou no céu, no departamento celestial do Delirium Tremens, o forte odor a substâncias psicoativas, a luz, tudo leva a crer que sim. Um homem vestido de branco, as imagens e as formas destorcidas regressam à minha mente, à minha frente, vejo-o perfeitamente, cabelo de ouro, olhos azul safira, penetrantes, cruéis, parecendo julgar-me pelo meu rubor facial, pela minha ataxia e insufciência respiratóra. Fala de forma imperceptível mostrando-me os dentes de ouro.
É o druida! Este filho da puta não pára de me perseguir, está visto que este céu é dele e insiste na poção, agora adminsitra-me vodka nas veias, por via intravenosa o efeito é mais rápido, já não chega o que passei lá em baixo, maldito sejas!
- Você não é de cá, pois não? Ontem à noite esteve muito mal... dizia-me o homem de branco enquanto...enquanto ajustava o doseador da garrafa de soro.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Crime em Barcelona


Texto e foto: Manolo

O tempo parece perdido. As ruelas deixaram-se ficar por ali. Pararam.O bairro La Ribera esconde-se no tempo. E as ruas, umas por detrás das outras, protegem-se e acariciam-se nos «rendez-vous» dos estreitos cruzamentos sombrios, misteriosos mas românticos. Na Carrer de Sant Francesc de Paula, o Palau de la Música Catalana ergue-se como uma catedral, Lluís Domènech i Montaner, o seu arquitecto, assim o idealizou: uma catedral para os amantes da música. O Palau hipnotiza o visitante e prende-o como devoto a contemplar o céu.

Sergi aproveita as réstias de sol de fim de tarde, feixes ténues de luz que se esquivam entre os telhados, autorizados pelo Palau para dois dedos de conversa com os seus botões, à volta de um carpaccio de salmão com molho de lima, no El Bitxo, na Verdaguer i callis, uma ruela que se subjuga com orgulho ao Palau.

Sergi é um jovem e promissor repórter, ambicioso, sempre à procura das notícias, compensando a verdura dos anos com a irreverência e a avidez com que as procura. Recruta os seus informadores no «bas-fond», na policia, nas hospedarias, nas «casas de passe», nos circuitos da droga, no submundo da vida. Solitário, o seu jovem aspecto é afectado por algumas fragilidades narcísicas, como uma acne acentuada.

Bebe o último trago de vinho quando o telemóvel toca e ouve do outro lado:« um tipo apareceu aqui na esquadra e confessou ter assassinado a mulher na Carrel del Pi, num prédio junto à tasca «La Pineda», o inspector Mejias já foi destacado para lá, saludos chico». Apressou-se a pagar e saiu em direcção ao local do crime.

«Os abutres farejam a carne podre à distância», foi desta forma, e com um sorriso tipicamente chinês, que o inspector Mejias o cumprimentou.
- Boa tarde também para si, inspector. Confirma-se o crime? Perguntou-lhe Sergi, indiferente ao comentário.
- Quatro facadas no peito meu caro amigo, quatro. Respondeu-lhe o inspector.
- Crime passional, portanto. O motivo qual foi? Ciumes? Uma traiçãozita?
- O que é que lhe parece? Retorquiu-lhe o inspector.
- O que é que o homem faz?
- É sexólogo.
- Sexólogo? E matou a mulher? Perguntou Sergi, muito admirado, enquanto rabiscava umas notas no Moleskine.
- Bom furo, hein? Não é todos os dias que um sexólogo mata a mulher, está com sorte. Já estou a ver o titulo do seu artigo: «Sexólogo assassina mulher por ciumes», ironiza o inspector.

O ciúme é o rastilho em 57% das agressões entre os casais, de acordo com uma pesquisa realizada por universitários de 40 países, começa por explicar Sergi. Enquanto o ouve, Mejias, sem desvanecer o sorriso, acende um cigarro. E Sergi continua: Na perspectiva psicanalítica de Freud, a explicação para os assassinatos pode dever-se às forças inconscientes que motivam o comportamento humano. Freud, baseado na sua experiência clínica, acreditava que a fonte de perturbações emocionais residia nas experiências traumáticas reprimidas nos primeiros anos de vida. Ele acreditava que a personalidade se forma nos primeiros anos de vida, quando as crianças lidam com os conflitos entre os impulsos biológicos congénitos ligados aos estimulos e às exigências da sociedade. Talvez o assassino seja vítima do complexo de Édipo...
Alguém afirmou que «todos nós somos ciumentos em maior ou menor grau. A diferença está em como cada um encara este sentimento», rematou Sergi.
Muito interessante, ripostou o inspector Mejias, encaminhando-se para a pequena multidão de vizinhos, comerciantes e transeuntes curiosos que se juntaram à porta do prédio.
Sergi começou a indagar os vizinhos.« Não quero acreditar que o sr. Josep tenha assassinado a mulher, parecia ser um homem tão calmo», dizia a vizinha do 4º andar; a do 2º, por sua vez, assegurava que as discussões eram constantes:« ouvia-o a gritar muito alto, pobre senhora»;« eu não conhecia a senhora, nunca a vi, devia sofrer bastante, era sempre ele que fazia as compras», esclarecia a mulher de um comerciante; a viuva do andar do lado não conhecia a vítima, mas afirmava convictamente:« o homem era doido, várias vezes me assediou, acho que era professor de sexo...». Sergi sorria e tomava nota de tudo.« Meu querido, tens um sorriso muito bonito mas deves tratar dessa cara, faz uma máscara de leite e arroz cozido...», dava-lhe de conselho uma septuagenária. Outra, contrapunha:« o melhor é feijão pelado com leite de amêndoas, foi uma médica que mo disse». « Água oxigenada é que é, desinfecta tudo», rispotava com autoridade um policia.
Sergi agradeceu os conselhos e afastou-se.

- É estranho, ninguém conhecia a vítima. Ela é loira ou morena? Perguntou a Mejias.
- Isso é relevante? Perguntou o inspector.
- Não, não...posso ver o corpo?
- No 1º andar, meu caro.
Sergi entrou no apartamente, apreensivo, Mejias seguia-o.
- À esquerda, nessa sala à esquerda, orientava o inspector.
Sergi entrou. Fixou o corpo durante alguns segundos, deixando-se cair de seguida num pequeno sofá de tecido, estarrecido, tolhido por uma mistura de sobressalto e de perturbação; ficou pasmado perante o olhar imutável da «boneca de silicone», morena, olhos verdes de vidro, lingerie branca, ali no chão, golpeada sem apelo nem agravo no peito, onde sobressaiam partes do esqueleto em aluminio.
O inspector Mejias, de pé, encostado à ombreira da porta,com o seu sorriso tipicamente chinês,perguntou a Sergi que continuava imobilizado.
- No tempo do «seu» Freud já havia material deste?

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Nunca vi um lince


texto: manolo
foto: caoazul.com


Esta crónica, não pretendendo revestir-se de um carácter autobiográfico, retoma, no entanto, fragmentos da minha memória já longínqua. Se para uma narrativa de vida não me sinto neste momento preparado, não deixo de evocar os meus tempos de menino quando lia avidamente as apaixonantes aventuras de Tintin, em especial o «Tintin no Congo», ou, mais tarde, as proezas do corajoso capitão Blake e do sagaz professor Mortimer. Foram elas que me incutiram o gosto pela aventura, pela natureza e a vontade inabalável de conhecer o mundo. Haveria de ser o todo-o-terreno o veículo para a realização desses «sonhos-desejo», que se foram entranhando em mim, lentamente, envolvendo-me de tal modo que influenciaram determinantemente a minha personalidade.

Depois, já adulto, veio uma experiência épica com um Portaro de um amigo meu, apicultor, na Serra da Malcata, que me relatava as suas aventuras «no reino do lince» com um inexplicável brilhozinho nos olhos, já lá vão mais de trinta anos.

Chovia copiosamente, o meu amigo Rui preocupado com as suas colmeias e eu em fotografar, quem sabe, com um bocado de sorte, um lince. Nunca vi nenhum. Só os tinha visto embalsamados, «empalhados», em adegas da região, por cima da lareira de um notável da edilidade local " é um troféu de caça são raros", na casa dos guarda-florestais, no café central, na prateleira mais alta onde as garrafas de licor Beirão e as de Macieira exibem a sua disciplina perfilada e orgulho nacional face à timidez solitária de uma Vat 69. Na mesma prateleira onde, ao centro, está a moldura com o emblema do Benfica trabalhada em pequenos fragmentos de vidro e a figura em barro do Zé Povinho a fazer o manguito do «Queres fiado, Toma!», ladeadas de andorinhas pretas de Barcelos «coladas» à parede, pintada de um verde brilhante: e eu sem saber que se pintavam paredes daquela cor.

(Você vai tirar retratos aos gatos? Devia era levar uma caçadeira, esses ladrões comem-nos os coelhos todos)

Aquela noite revestiu-se de elementos notoriamente fantásticos, encandeando uma série de episódios estranhos e perturbantes, um número quase cabalístico de ficções e realidades que se me entranhou como um vírus. O poeta Fernando Pessoa dizia: «primeiro estranha-se, depois entranha-se». Agustina Bessa Luís chamou-lhe uma espécie de «vício de alma».

Chovia copiosamente.

(Você vai tirar retratos aos gatos? Com este vendaval? Tá bem tá)

Copiosamente. O melhor chefe de redacção que tive, o saudoso António Alçada Batista, «descompunha-me» quando utilizava esta forma obtusa de adjectivação.

(Você vai tirar retratos aos gatos? Chove a rodos, homem! Beba um bagacinho e fique aí, que hoje dá o Dallas. Zé, é hoje não é?)

O Zé, ao balcão, dizia que sim com a cabeça enquanto passava o pano pela pedra mármore preta, pingada de mágoas anónimas, euforias desconcertantes, ilusões e desilusões e outras bebidas.

Seguimos o conselho, mas não ficamos para ver o «JR» a preto e branco.

(Aquele bicho é mesmo ruim)

Já passava da meia-noite, serra adentro, o meu amigo explicava-me as potencialidades daquela segunda alavanca das mudanças, mais pequena, mais robusta, mais decisiva. O Portaro com caixa aberta de madeira conhecia os sítios mais recônditos da serra. Uma mãe javali escapava ao súbito luar dos faróis com um carreirinho de crias entre o matagal denso, quase impenetrável. A chuva intensificava-se e a Malcata vestia-se de breu, envolta em trevas, sombras frenéticas e sibilantes.
No olhar do meu amigo apicultor a angústia de perder abelhas-mestras, abelhas-obreiras e zangões. «Uma colmeia tombada...no Inverno perdem-se muitas abelhas»...e, num ápice, à nossa frente, num grande palco, que cena: um raio sobe (sim, os raios sobem, não caem) fulminante sentencia o enorme carvalho que protege o apiário, rachando-o ao meio, um estrondo, uma luz intensa, apocalíptica, pedaços de árvore, fragmentos de vidro, pedaços de colmeia. Há olhos de felideos cintilantes por todo o lado, que nos miram espantados de todas as direcções, garrafas que tremem nas prateleiras, andorinhas que se tranformam em morcegos, rainhas, operárias e zangões jazem sob a lama e a chuva cada vez mais intensa.

(Não te atrevas a escrever copiosamente)

Assustado o Portaro foge para a direita, resvala e cai num buraco dissimulado por uma urze. às voltas na labuta para o tirar do buraco, o meu amigo lembra-se de que dias antes se tinha esquecido ali, nquele mesmo local, junto às colmeias, de uma corda, «era uma corda grossa de marinheiro, temos de a encontrar, é a única safa que temos», gritava-me o Rui. A sua voz chegava-me trémula e interrompida pela cadência alternada das pequenas quedas e das tentativas de reequilíbrio para resistir à enxurrada que levava tudo o que encontrava à frente.
As buscas mostravam-se infrutíferas, desesperantes, os braços e os joelhos enterrados na lama, só já comunicava com o Rui, tal como as abelhas, através de toques, movimentos, sons e cheiros. Não nos ouvíamos. O cheiro a madeira queimada, os corpos molhados na enxurrada, sem forças, como as rainhas,operárias, zangões, quase como «linces empalhados»...

Subitamente, um brisa gélida, angustiada, atinge-nos o peito como uma lança, acompanhada de um fedor sulfuroso. Uma luz ténue surge do carvalho jazendo em cinzas, e desta ergue-se um vulto, um rosto magro de mulher de pela branca, quase transparente, manto branco, sem pés, que se desloca como se flutuasse. E nós, de joelhos, siderados...

- É ela!
- É ela quem, Rui? O que é que se passa aqui? Gritava eu, quase em silêncio.

(Ó diabo, você também viu a pequena? Tirou-lhe o retrato? Zé, estás ouvir isto?)

O Zé, ao balcão, dizia que não com a cabeça: " Não gosto de falar nisso. Tenho muito respeito por essas coisas"

O vulto deslocou-se para junto de umas pedras e iniciou um movimento circular. Tal como quando uma abelha quer informar as suas companheiras de colmeia que encontrou uma fonte rica em néctar ou pólen, inicia uma dança circular sobre a descoberta.

O Rui gatinha desesperamente na sua direcção, e à medida que se aproxima das pedras o vulto recua e esvaece-se até desaparecer por completo. O Rui tropeça na corda de marinheiro.

-Encontrámos a corda, foi ela!
- Rui explica-me isto. Quem é ela?
- Não sei, já ouvi falar qualquer coisa...parece que foi morta por um raio, não sei, vamo-nos.

(Ó diabo, você também viu a pequena?)

Perante a minha incredulidade, o meu amigo Rui prendia um pequeno tronco à roda da frente com a corda de marinheiro e, de cada vez que o Portaro progredia meia roda, desatava e tornava atar o tronco. Chegámos a casa já raiava o dia, o Portaro ficou a dormir no alpendre e nós, ficamos a contar um ao outro o que já sabiamos mas, nunca vi um lince.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Desertor


Texto: Manolo
Foto: Jorge Soares



A chuva cai miudinha. As luzes de natal das Galerias Lafayette Haussmann parecem convencer-nos de que vivemos no melhor dos mundos. O meu, infelizmente, desmoronou-se.

A «Chemin», a minha eventual editora, não aceitou publicar o romance que andei a escrever durante o último ano e meio. Francine, a minha namorada, acabou a relação comigo - por telemóvel - porque no último ano e meio não lhe dei a atenção que ela achava que merecia. Concordei.
Esta manhã não participei na habitual reunião semanal dos quadros da empresa e entreguei a minha carta com o pedido de demissão ao próprio presidente.

Nessa carta, eu referia que depois de quase 25 anos de total dedicação ao jornal, e à empresa, onde, todas as semanas, na habitual reunião ele pôde constatar o empenho e o entusiasmo que dediquei à redacção, quase 24 horas por dia, participando em projectos, ideias, entrevistas, investigações, inovações, tanta coisa...,tanta coisa que me fez passar ao lado de outras tantas igualmente importantes, como o amor, a familia, os amigos...e, porque não, eu próprio. Fui, como o presidente tantas vezes disse, uma «máquina», consciente e produtiva, de entrega total a este jornal.
Hoje, na habitual reunião semanal, o presidente deu pela minha ausência, pelo meu silêncio. É verdade, não estou doente, não ando em reportagem, não faltei. Desertei!
Os meus amigos desaconcelharam-me; a minha ex-mulher diz que eu sou um irresponsável sem consideração pelo ordenado que tenho; os meus vizinhos, perante o quadro de desemprego, julgam-me severamente. Pode ser que todos tenham razão, mas eu quero desertar, preciso de o fazer!

Na reunião de hoje, pela primeira vez em tantos anos, estarei ausente, melhor, estarei presente, mas de forma diferente: «estarei» naquela cadeira vazia onde nem uma bomba interromperá o meu silêncio.
Ainda não sei para onde vou, mas para onde for quero ver a terra a namorar com a lua; o sol a correr no astro até cair de cansaço ao final do dia, tocar nas estrelas como o dedo, uma a uma; quero ouvir o resfolegar dos cavalos, o bafo do vento a lamber-me a cara; quero tornar-me um ser improdutivo cujo espírito errante pára no detalhe impensável.
Para os que ficam, especialmente para o presidente, desejo que continue a seguir atentamente a bolsa, as audiências, as vendas, a verificar a cada dia os mapas e as curvas de crescimento.
Mais tarde, bastante mais tarde, a sua fortuna será incomparável, a minha será outra. De qualquer maneira, no destino final que a todos nos está reservado, a seis palmos e meio abaixo da terra, nem a sua nem a minha nos servirão para nada.

Enquanto as luzes de natal das Galerias Lafayette Haussman insistem em nos alimentar a esperança, a minha esfuma-se entre as pessoas que, de um lado para o outro, com a ancestral estratégia da formiga, e numa movimentação que parece ter sido ensaiada até à exaustão, parecem felizes transportando pacotes e sacos, presentes para os outros e para si próprios. As crianças fogem do pai natal, os vendedores de castanhas assadas perfumam as ruas e prometem aconchego. Os amantes, parados, olhos nos olhos, despedem-se em silêncio e escondem a mágoa da separação com as abas dos guarda-chuvas. O Natal não propicia as relações proibidas, proíbe os encontros, é uma época em que o pensamento, como uma velha engrenagem, mói e remói a vontade reprimida, a lembrança dos bons momentos. É o regresso à realidade, à familia, às contas para pagar, aos presentes hipócritas, à falta de carinho quando ele é preciso e não pode ser partilhado.

Continua a chover, agora com mais intensidade, e dói-me a cabeça. Entro na farmácia da L'Opera Mogador, compro um pacote de aspirinas e engulo duas a seco, dirijo-me de seguida para a livraria L'Astrolabe, de livros de viagens, que fica ali perto, na rua de Provence, para dar um abraço de despedida ao Remy.
- Então vais-te embora assim? Sem mais nem menos?
- O que fico cá a fazer?
- E a Francine? Fiquei calado.
- Porquê para a República Centro-Africana?
- Sei lá. África é como um alvo e quero acertar bem no meio...talvez me junte ao Comité Internacional da Cruz Vermelha, que acompanha a situação humanitária, é uma ideia. Sabes que a República Centro-Africana é um dos países africanos com maiores índices de mortalidade até aos cinco anos e nas mulheres? Estima-se que em cada semana morram perto de 420 crianças nos confrontos entre as forças governamentais e os grupos rebeldes.
- Merda de mundo. Não há nada que eu possa fazer para...?
- Podes. Arranja-me um bom mapa da RCA.
- Quando partes?
- Amanhã. Tenho voo directo da Air-France para Bangui.
Remy beijou-me, abraçou-me e sussurrou-me ao ouvido: - és o tipo mais teimoso que conheço. Ao mesmo tempo batia-me com o mapa na nuca enquanto tentávamos disfarçar as lágrimas.

Quatro dias depois.

A pancada violenta com a bota na região lombar fez-me entrar naquele calaboiço assustador de forma pouco formal. O telemóvel caiu-me do bolso e, quando me estiquei para o apanhar, a mesma bota esmagou-me a mão. O militar apanhou o telemóvel, sorriu e guardou-o no bolso da camisa.
O calaboiço era pequeno, não tinha janela nem luz. Entre as frestas das tábuas que faziam de porta penetravam farrapos da claridade frouxa do crepúsculo, intermitentes devido às sombras provocadas pela movimentação dos militares que pareciam gritar uns com os outros.
- Fomos condenados à morte.
A afirmação proveio de um dos cantos da divisão. Não me apercebi que havia ali mais alguém. O homem estava sentado, parecia jovem, cerca de 30 anos, e tinha uma ferida feia na testa resultante de uma coronhada.
-Quem és tu?
- Sou um condenado à morte.
- Porquê?
-Porque tenho um passaporte francês.

Vincent é francês, e vivia na Guiana francesa. Nos finais dos anos 80 esteve na República Centro-Africana para completar a sua tese sobre a doença do sono. Especializou-se nesta doença, também conhecida por tripanossomiase africana, e alguns anos mais tarde, regressou como especialista para estudar e para tentar novas descobertas sobre as três variedades de moscas tsé-tsé e sobre o papel destes insectos no transporte do parasita causador da doença (o Trypanosoma brucei).
No momento em que chegou sorridente, com o passaporte na mão, as autoridades tinham interceptado um importante carregamento de armas ilegais, de origem francesa, que teria como objectivo cair nas mãos de uma facção rebelde. Apanhado na confusão, o jovem médico foi interrogado e violentamente agredido, de que resultou um estado de afonia total. Como não conseguia falar, apenas chorar, foi considerado espião não colaborante e, consequentemente, condenado à morte.
Vincent percebia razoavelmente o dialecto sango, pelo que se pôde aperceber que lá fora decorria o meu julgamento.

-És jornalista?
- Como sabes?
- Entendo o que dizem...Estás aqui porquê? Perguntou-me com a voz trémula.
- Sou jornalista sem patrão e um escritor sem editora. Escritor...tenho um romance na gaveta.
- E de que tratava o teu romance?
- Era a história de um casal de jovens em que ela acabava por se apaixonar pelo pai dele. Aí começava uma triangulação amorosa, perigosa, em que ela se dividia de forma manipuladora entre a paixão, o carinho, a ingenuidade do filho e a perversão do pai. Tudo isto condimentado com uma verdadeira guerrilha psicológica, episódios do dia-a-dia, reflexos do bem e do mal, álcool e drogas. Ela revelava-se manipuladora, sem escrúpulos e até devassa, como uma das piores vilãs do Antigo Testamento, a rainha Jezebel. Mais tarde, encontraram-na morta...
Enfim, uma história que não convenceu a minha editora.

(o silêncio fez-se ouvir)

- Eles odeiam jornalistas...eles odeiam toda a gente. Desabafou Vincent batendo com a cabeça na parede.

Fui interceptado por uma patrulha, na bifurcação de Sibut, quando me dirigia para Kaga Bandoro, onde se encontra uma das 3 subdelegações do Comité Internacional da Cruz Vermelha. O militar que me interpelou só falava sango, tentei explicar que era voluntário da Cruz Vermelha , mostrei o logótipo, mas quando me revistaram e encontraram a minha carteira de jornalista, o militar não teve contemplações e tratou-me como se eu fosse um assassino.
Na sombra do conflito armado, desencadeado entre as forças rebeldes e o governo, milhares de civis foram mortos e estrupados, as casas e as lojas saqueadas. As acusações de crimes sexuais são detalhadas e substanciais.

A alvorada irrompeu com a algazarra dos militares, num caos feito de ordens, gritos, movimentações e gargalhadas que exalavam violência e ódio. Percebia-se pelo manuseamento, pelo respirar metálico das AK-47. O ferrolho da porta rolou, eu e o Vincent demos as mãos. Tremíamos. O primeiro militar a entrar no calaboiço, com um pontapé certeiro nas nossas mãos, desfez aquele enlace de medo e cumplicidade.
De seguida, puseram-me fora do casebre de forma agressiva. Vincent continuou lá dentro. Ao tentar pôr-me de pé, deparei-me com aquilo que parecia ser um pelotão de fuzilamento.
O militar que me roubou o telefone, me deu o pontapé nas costas e me esmagou a mão leu-me em voz alta, em dialecto sango, algo que eu não entendi mas que presumo ser a sentença.
Em menos de 24 horas houve julgamento, sem direito a defesa, e foi preferida a sentença. Aqui a (in)justiça é célere. Após a leitura do veredicto o pelotão assume uma postura mais formal, os soldados dispõem-se em posição de disparo e colocam-me na frente do pelotão, a cerca de dez metros.

Estou perante as famosas «Kalashnikov» AK-47, projectadas pelo general russo Mikhail Kalashnikov, a arma mais traficada no mundo. Pouco usuais em fuzilamentos. Mas em tempo de guerra não se limpam armas, não é verdade?
Onde estão as espingardas com uma só bala? Qual destes matadores receberia uma arma apenas com um bala falsa?

A coragem não existe. O medo é o verdadeiro motor dos actos heróicos. Mark Twain escreveu que a coragem é a resistência ao medo, o dominio do medo e não a sua ausência. Para mim, estar à frente de um pelotão de fuzilamento com serenidade, sim, estou muito calmo, não é um acto de coragem ou de heroísmo, é o reflexo do medo. O pavor relaxou-me. Recordo, nestes últimos instantes da minha vida, fuzilamentos famosos como o do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, o do Imperador Maximiliano quando a monarquia foi derrubada no México, os «famosos» fuzilamentos de Goya. Mas porque não me lembrei disto? De escrever um romance que incluísse fuzilamentos, códigos, enigmas, chaves de ouro maciço que abrem portas inexistentes, sinais divinos, as pessoas iam gostar, a minha editora ia adorar...

O militar aproximou-se de mim e estendeu-me um maço de cigarros. O último desejo?

(Mas tinha deixado de fumar, fazia-me mal)

O militar dá uma ordem, o pelotão fica em sentido. Outra ordem, o pelotão aponta as armas, outra ordem...
Subitamente, o processo é interrompido pelo «Magic Time», de Van Morrison, do som polifónico do meu telemóvel que continua no bolso da camisa do militar que comanda as operações.
O pelotão de atiradores soltou uma gargalhada em uníssono. O militar, irritado, dá uma ordem e o pelotão regressa à posição de «à vontade». Tira o telemóvel do bolso, estende-mo e desenha o sorriso mais cinico que vi nos meus 45 anos de vida.

- Parabéns meu querido. é a Francine, estás a ouvir-me? Fui ter contigo ao jornal, disseram-me que te tinhas despedido; encontrei o Remy, disse-me que foste para África. Tenho tantas saudades tuas, não posso viver sem ti, regressa...fui uma parva...não podia deixar passar o dia do teu aniversário sem te dizer isto...e tenho uma prenda para ti: a editora escreveu-te uma carta, quer publicar o teu romance, imagina, ...diz qualquer coisa, por favor...
Bip...bip...bip...bip...bip









terça-feira, 3 de novembro de 2009

O anjo do panamá



Texto e fotos: Manolo
Estava uma noite escura como breu e a viagem previa-se dificil, os quase cem quilómetros entre Rosso e Djama estavam praticamente intransitáveis, as águas do rio Senegal chegavam a atingir, por vezes, as partes mais altas da pista: uma verdadeira odisseia.

Era por volta das 21 horas quando o Land Rover Defender «130» atravessou a fronteira em Djama. O destino era a ilha de Saint-Louis, classificada como património mundial pela UNESCO, localizada no noroeste do Senegal, perto da foz do rio do mesmo nome e a 320 quilómetros a norte de Dakar, onde uma equipa de seis cientistas - dois espanhóis, um francês, um norueguês, um canadiano e uma portuguesa, Helena - iria desenvolver um trabalho de pesquisa no rio Senegal, em cooperação com o «Centre National de la Recherche Scientifique» do Senegal e com o patrocinio da União Europeia.

A equipa não quis jantar no Hotel de la Poste, praticamente vazio, foram todos para um restaurante francês muito simpático que havia nas imediações, com música ao vivo; a excepção foi Helena que, a pretexto de estar cansada, recusou amavelmente o convite do colega francês Gustave, apesar da insistência deste.

Helena preferiu a esplanada coberta do hotel, pediu um gin-tónico e ficou a ver a chuva a cair: os vendedores arrumavam precipitadamente o artesanato junto ao velho edificio da «Aeropostal», as pessoas corriam, havia um vaivém ininterrupto dos pequenos autocarros com gente aos magotes no interior e outros tantos pendurados, as crianças chapinhavam nas poças. Um véu de neblina caía sobre a ilha e, qual fria mortalha do esquecimento, envolvia os velhos edifícios de arquitectura colonial de meados do século XIX.

Não tinha fome nem sono, mas estava exausta. No céu nem sequer uma estrela luzia, um casal divinamente formoso que passava despertou-lhe atenção, trocaram sorrisos e persegui-os com o olhar até desaparecerem na esquina.

Helena é morena e usa o cabelo muito curto; um céu de sardas sobressai-lhe do rosto fino. Não sendo bonita, exala exostismo, sensualidade, elegância e charme. É uma mulher linda de se ver.
Apeteceu-lhe um cigarro, não que fumasse muito, mesmo assim...
No momento em que o pôs na boca surgiu-lhe à frente um zippo dourado, que uma mão firme de homem, num gesto implacável, fez faiscar esfregando a roldana de metal rugoso na mola.
-Obrigada
-De nada. Francesa?
-Não, sou...
-Posso fazer-lhe companhia? Dois gins-tónicos como muito limão, por favor, pediu ao empregado!
Helena, meio atordoada e confundida com a ousadia, gostou da surpresa. O homem que lhe acendeu o cigarro e a alma, cerca de 35 anos, sentou-se, tirou o panamá da cabeça e colocou-o sobre a mesa.

- Gosta da chuva?
Acenando afirmativamente com a cabeça, respondeu: - e adoro o cheiro da terra molhada.
- A chuva é o mar do céu - disse-lhe ele num tom doce enquanto batia o copo no dela.
- Quando era pequena perguntava ao meu pai porque é que chovia e ele respondia-me que era para fazer a terra feliz.
- Resposta sábia. Esse firmamento que tem no rosto herdou-o de seu pai?
Helena concordou, corou, baixou os olhos, abriu a mão e com o dedo médio percorreu as formas suaves do panamá, como se percorresse o passado.
- Como se chama?
- Peço-lhe desculpa nem me apresentei, trate-me por Jean.
- Eu sou Helena.
- Helena, como a filha de Zeus? E o que faz?
- Sou professora e você?
- Sou...mercador, é isso mesmo, sou mercador. Ao mesmo tempo que esboçava um sorriso que já a tinha encantado.
- Em que área?
- Na área dos sonhos, da fantasia, negoceio com anjos e querubins e cruzo os céus da terra à procura das melhores utopias - concluiu com um dos seus belos sorrisos de cujo encanto tinha o segredo e que era, talvez, a mais clara explicação para o seu charme. Era bem constituido, mãos grandes, corte de cabelo «vintage hair» que lhe dava um ar misterioso, de sagaz aventureiro.

- Já há muito tempo que não via um panamá tão bem feito. Suave, sem costuras, é um autêntico panamá. Foi numa das suas viagens que o encontrou? Já esteve no Equador?
São feitos à mão no Equador. Sem costuras, suave ao tacto. Este é o mais clássico dos chapéus para a estação cálida - um mito da elegância.
Os panamás não se fazem no Panamá. E isto já diz muito sobre a história e a tradição centenária dos «sombreros» mais clássicos da estação estival. O Panamá foi durante um par de séculos um importante porto de embarque, mas na realidade os elegantes chapéus brancos, cujos destinatários eram os membros da alta burguesia europeia e norte-americana, fabricavam-se (e ainda se fabricam) no Equador, para além de um reduzidissimo número de países da América do Sul.

Fabricados...será mais correcto dizer criados. Porque os verdadeiros panamás são uma verdadeira obra de artesanato comparável a um tapete feito à mão, como o expressou muito bem Tom Wolf, o autor do livro A Fogueira das Vaidades: «O prazer de tê-lo e de pô-lo compensa os sacrificios que os pobres passam em produzi-lo».

Não é a única homenagem conformista ou politicamente correcta. Basta observar um pouco como se fazem. Obtidos a partir de uma espécie de folha de palmeira conhecida por «toquilla» (corta-se antes que alcance o metro e meio de altura), a manufactura de um panamá de luxo exige de um a dois meses de trabalho aos indigenas que o tecem, impecavelmente, sem costuras.
As fibras das folhas demolham-se durante alguns dias, ficando a escorrer à sombra de cabanas para se escolherem as mais elásticas e subtis. A tecedura começa pelo topo e realiza-se numa peça única. É um exercício de mestria que remonta, provavelmente, à arte dos antigos «mayas» no fabrico dos seus magníficos tecidos vegetais.
- Como é que percebe tanto de panamás? Perguntou Jean, estupefacto e totalmente fascinado com a eloquência da sua atraente interlocutora.
- É um chapéu mítico e era o preferido do meu avô, tinha vários...verdadeiros, feitos à mão no Equador.

A conversa prolongou-se pelo jantar, na elegantíssima sala Mermoz, decorada com motivos do correio aéreo que voava de Toulouse ao Rio de Janeiro, com uma das escalas em Saint-Louis, e do seu piloto mais famoso: Jean Mermoz. A sala estava vazia e proporcionava uma tranquilidade celestial. Helena e Jean estavam absorvidos pela conversa, trocando de vez em quando gestos carinhosos que acrescentavam à intimidade do jantar: uma paixão recíproca.

A libido entre os dois é notória pelos sinais gestuais que confirmam, no vinho degustado com prazer e encanto, e identificado por Jean como o símbolo do requinte: - Beber vinho e amar são instantes de total entrega. Helena molhou os lábios no «Chateau Petrus», e beijou apaixonadamente Jean. Este pegou-lhe na mão e quando chegaram junto à escadaria estreita levou-a ao colo até ao quarto 219; não parecia um vulgar quarto de hotel, móveis, objectos pessoais, quadros e retratos, pareciam ter uma relação directa, muito íntima, com o hóspede.
- Costuma ficar aqui muitas vezes?
- Fico sempre aqui. Tem uma vista soberba sobre o rio e a praça.
- Helena desviou o cortinado para ver; Jean, abraçando-a pela cintura, começou a beijar-lhe o pescoço...

De manhã, Helena acordou com um dedo de sol a acariciar-lhe o rosto. O dia estava bonito e ela feliz. Os seus olhos brilhavam e o seu corpo, adoçado por uma noite de amor, parecia ter mais energia do que nunca.
De repente, deu-se conta que estava sozinha. Não havia malas ou roupa espalhada, apenas móveis, objectos sem vida, sem memória. Objectos que só ganham brilho, quando há memória. Jean tinha partido, porquê?
Não chorou, mas os seus olhos ficaram tristes. Desceu, dirigiu-se à recepção e perguntou se o hóspede do quarto 219 já tinha saido?
- O recepcionista, admirado, balbuciou: - O hóspede do quarto 219? Esta noite não alugamos esse quarto...
- Um senhor chamado Jean não consta da sua lista? Costuma ficar sempre no quarto 219, veja lá, por favor, deve conhecê-lo.
- Jean? Quem costumava ficar nesse quarto era Jean Mermoz, o famoso aviador, mas morreu em 1936 no meio do Atlântico e agora o quarto é uma espécie de museu, quer visitá-lo? Tenho muito prazer em...
- Não se incomode, muito obrigado.

Helena sentou-se na sala Mermoz para tomar o pequeno almoço, fixou o olhar na imagem do piloto que lhe dá o nome, a qual, na noite passada não parecia estar ali naquela parede.
Gustave, o francês, aproximou-se:- Bom-dia, ontem quando viemos do restaurante ainda bati uma vez à porta do teu quarto, mas já devias estar a dormir...estavas tão cansada que dormistes como um anjo, não?
Helena, sem deixar de olhar para a imagem de Jean Mermoz, respondeu muito baixinho: - Como um anjo não, com um anjo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A «Perfect Day»


Text: Manolo
(Photo: Pablo Moreira. UNESCO)
Democratic Republic of the Congo. Since Goma, the stoic Galloper had been complaining of the «miserable life» it had been given. A rough life, no overhauls att all, no changing of filter, no rescrewing, well, without any kind service. Gauges didn't work; the suspension had long forgotten its function and the motor revealed an arrythmia as if its « sinus knot» couldn't stimulate the «heart». «It consumes some oil but it'ii manage», said the rent-a-car lad at the door of Hotel Lhusi while he poured the third litre of oil into the unfortunate Galloper. We guessed it would be a very bumpy ride until the bowels of the Virunga Mountains, where Emmanuel de Merode, the director of WildlifeDirect, was waiting for us, to guide us to the that superb gorilla world in Virunga National Park.




The day before, we flew in a old Antonov from Kinshasa to Goma. At first, we had intended to cross Congolese territory by jeep, but my dear friend and work pal from Invicta - the familiar name of Porto - Rui Newmann, the PNN (Portuguese News Network) correspondent in Africa, used to risky settings, was very frank: «Never cross Uganda by land because of the nasty movement that calls itself - Lord's Resistance Army», winch isn't fond of white people. Don't even think about it».




To attain the objective, there was "only" about 300 km ahead of us through the world's second largest tropical forest, excelled only by the Amazon region. However, I do not know why, I was worried and you...smiled.




Backpacks, the satellite phone, two packs of stale biscuits, three bottles of water, a blind trust on the GPS and some one dollar notes because there's always someone you need to bribe. Following the good tradition ordained by Mobutu « article 7 is valid for every Congolese, meaning...be resourceful!», this was our main equipment. After the legal and not so legal procedures, we penetrated the ex-Belgian Congo, and ex-Zaire forest. By late afternoon, we wanted to reach the first Virunga station, at the National Park, the first to be created back in 1925 and proclaimed World Heritage in 1979, and where gorillas are still being decimated at such an incredible rate thereby putting the species in danger of extinction.




Our eyes welled up with tears as they met a magnificence whose dazzling beauty overwhelmed us. Completely subdued by the spell of the tropical forest, we did not realize that the Galloper was beginning to die. We were roughly 85 km from our destination ehen I felt the motor seize up a bit and, right or wrong, I decided to stop and verify the oil level: completely dry. Nothing that I had not anticipated, but you were smiling and saying, everything would be all right. If the gauges had been working they would have complained a long time ago. With great strain, I moved forward only some metres to a small open area beside a track from where, in a valley 300 metres away, we could catch a glimpse of a waterfall whose waters sprang into a huge lake. There was nothing we could do. As if bewitched by luxuriant vegetation, we held hands and stolled like lovers in Central Park. The birds and the violent shudder of the leaves on the trees caused by the shaking of the more curious chimpanzees did not frighten you uneasy, and I felt your hand squeezing mine more tightly.


We unsuccesfully tried to contact Emmanuel de Merode through the sattelite phone; the connection was terrible and there was no signal. I searched through the Galloper hoping to find a can of oil, even if it was only that bulk truck oil that the rent-a-car lad poured down the "throat" of the first generation Mitsubishi motor. Zero!


It was very hot and we longed to dive into the waters of the lake but prudence is always a good advisor; it is suicidal to get into rivers and lakes of this country. Hippopotamus, for instance, are the animals that kill more people.


We tried again to contact Emmanuel de Merode. «Are you late? Ary you lost?» After we had explained the incident and given him our coordinates, he burst into laughter: « No problem, we will pick you up and we shall tow the jeep away, if needed. Be careful, do not get too near the lakes and stay calm. We will be there in no time».


The night was warm and on the ground threads of water flowed here and there gathering to form a minute and peculiar complex web that feeds brooks, rivers and lakes in a millenary ritual. We picked a dry spot and began preparing our supper. On huge green leaves we put the cookies and, as expected, I took care opening the water bottle with the same rite as if were the most exquisite Petrus wine. We shared the cookies with kisses and the atmosphere seemed soaked in overwhelming peace. Once in a while we heard howling screams and gorilla grunts, now sharp then gentle. Quiet, we stared at each other's eyes, and you would say: « it's remote», and you would kiss me. The perfume of the flowers, the leaves, the stems and bamboos soothed us. It was our love's perfume. Countless number of times we listened to Lou Reed's «Perfect Day», the only tune I had on my cellular; you came to dwell in my body. We were immersed within each other as we enjoyed the time we had together. We satiated our longing desire and, above our wet bodies, a firely candelabrum brigtened our passion, while «Perfect Day» echoed within the forest: «Oh it's such a perfect day / I'm glade I spent it with you / O such a perfect day / You just keep me hanging on...You just keep me hanging on...»


Before daybreak, we where suddenly awakened by the roar of a powerful motor. Bewildered, we hid ourselves in the almost impenetrable forest and kept quiet in fear it might be a rebel group. A huge Deutz truck stopped near the Galloper and rejoicing, we saw Emmanuel de Merode, who stepped out and offered thousands of excuses. «We only managed to get hold of this truck during the nigth. Pleas forgive me thousands of times for leaving you here alone for such a long time in the hands of the forest threats. My God, are you frightened? Oh, my poor lady, ehat a shame...» While Nogbobo, the engineer, a Mubti tribe pygmy, dumped some more litres of oil into the infortunate Galloper, and Emmanuel de Merode once more offered thousands of excuses, we looked into each other's eyes, smiled and our lips silently spoke: «Perfect Day».