sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Desertor


Texto: Manolo
Foto: Jorge Soares



A chuva cai miudinha. As luzes de natal das Galerias Lafayette Haussmann parecem convencer-nos de que vivemos no melhor dos mundos. O meu, infelizmente, desmoronou-se.

A «Chemin», a minha eventual editora, não aceitou publicar o romance que andei a escrever durante o último ano e meio. Francine, a minha namorada, acabou a relação comigo - por telemóvel - porque no último ano e meio não lhe dei a atenção que ela achava que merecia. Concordei.
Esta manhã não participei na habitual reunião semanal dos quadros da empresa e entreguei a minha carta com o pedido de demissão ao próprio presidente.

Nessa carta, eu referia que depois de quase 25 anos de total dedicação ao jornal, e à empresa, onde, todas as semanas, na habitual reunião ele pôde constatar o empenho e o entusiasmo que dediquei à redacção, quase 24 horas por dia, participando em projectos, ideias, entrevistas, investigações, inovações, tanta coisa...,tanta coisa que me fez passar ao lado de outras tantas igualmente importantes, como o amor, a familia, os amigos...e, porque não, eu próprio. Fui, como o presidente tantas vezes disse, uma «máquina», consciente e produtiva, de entrega total a este jornal.
Hoje, na habitual reunião semanal, o presidente deu pela minha ausência, pelo meu silêncio. É verdade, não estou doente, não ando em reportagem, não faltei. Desertei!
Os meus amigos desaconcelharam-me; a minha ex-mulher diz que eu sou um irresponsável sem consideração pelo ordenado que tenho; os meus vizinhos, perante o quadro de desemprego, julgam-me severamente. Pode ser que todos tenham razão, mas eu quero desertar, preciso de o fazer!

Na reunião de hoje, pela primeira vez em tantos anos, estarei ausente, melhor, estarei presente, mas de forma diferente: «estarei» naquela cadeira vazia onde nem uma bomba interromperá o meu silêncio.
Ainda não sei para onde vou, mas para onde for quero ver a terra a namorar com a lua; o sol a correr no astro até cair de cansaço ao final do dia, tocar nas estrelas como o dedo, uma a uma; quero ouvir o resfolegar dos cavalos, o bafo do vento a lamber-me a cara; quero tornar-me um ser improdutivo cujo espírito errante pára no detalhe impensável.
Para os que ficam, especialmente para o presidente, desejo que continue a seguir atentamente a bolsa, as audiências, as vendas, a verificar a cada dia os mapas e as curvas de crescimento.
Mais tarde, bastante mais tarde, a sua fortuna será incomparável, a minha será outra. De qualquer maneira, no destino final que a todos nos está reservado, a seis palmos e meio abaixo da terra, nem a sua nem a minha nos servirão para nada.

Enquanto as luzes de natal das Galerias Lafayette Haussman insistem em nos alimentar a esperança, a minha esfuma-se entre as pessoas que, de um lado para o outro, com a ancestral estratégia da formiga, e numa movimentação que parece ter sido ensaiada até à exaustão, parecem felizes transportando pacotes e sacos, presentes para os outros e para si próprios. As crianças fogem do pai natal, os vendedores de castanhas assadas perfumam as ruas e prometem aconchego. Os amantes, parados, olhos nos olhos, despedem-se em silêncio e escondem a mágoa da separação com as abas dos guarda-chuvas. O Natal não propicia as relações proibidas, proíbe os encontros, é uma época em que o pensamento, como uma velha engrenagem, mói e remói a vontade reprimida, a lembrança dos bons momentos. É o regresso à realidade, à familia, às contas para pagar, aos presentes hipócritas, à falta de carinho quando ele é preciso e não pode ser partilhado.

Continua a chover, agora com mais intensidade, e dói-me a cabeça. Entro na farmácia da L'Opera Mogador, compro um pacote de aspirinas e engulo duas a seco, dirijo-me de seguida para a livraria L'Astrolabe, de livros de viagens, que fica ali perto, na rua de Provence, para dar um abraço de despedida ao Remy.
- Então vais-te embora assim? Sem mais nem menos?
- O que fico cá a fazer?
- E a Francine? Fiquei calado.
- Porquê para a República Centro-Africana?
- Sei lá. África é como um alvo e quero acertar bem no meio...talvez me junte ao Comité Internacional da Cruz Vermelha, que acompanha a situação humanitária, é uma ideia. Sabes que a República Centro-Africana é um dos países africanos com maiores índices de mortalidade até aos cinco anos e nas mulheres? Estima-se que em cada semana morram perto de 420 crianças nos confrontos entre as forças governamentais e os grupos rebeldes.
- Merda de mundo. Não há nada que eu possa fazer para...?
- Podes. Arranja-me um bom mapa da RCA.
- Quando partes?
- Amanhã. Tenho voo directo da Air-France para Bangui.
Remy beijou-me, abraçou-me e sussurrou-me ao ouvido: - és o tipo mais teimoso que conheço. Ao mesmo tempo batia-me com o mapa na nuca enquanto tentávamos disfarçar as lágrimas.

Quatro dias depois.

A pancada violenta com a bota na região lombar fez-me entrar naquele calaboiço assustador de forma pouco formal. O telemóvel caiu-me do bolso e, quando me estiquei para o apanhar, a mesma bota esmagou-me a mão. O militar apanhou o telemóvel, sorriu e guardou-o no bolso da camisa.
O calaboiço era pequeno, não tinha janela nem luz. Entre as frestas das tábuas que faziam de porta penetravam farrapos da claridade frouxa do crepúsculo, intermitentes devido às sombras provocadas pela movimentação dos militares que pareciam gritar uns com os outros.
- Fomos condenados à morte.
A afirmação proveio de um dos cantos da divisão. Não me apercebi que havia ali mais alguém. O homem estava sentado, parecia jovem, cerca de 30 anos, e tinha uma ferida feia na testa resultante de uma coronhada.
-Quem és tu?
- Sou um condenado à morte.
- Porquê?
-Porque tenho um passaporte francês.

Vincent é francês, e vivia na Guiana francesa. Nos finais dos anos 80 esteve na República Centro-Africana para completar a sua tese sobre a doença do sono. Especializou-se nesta doença, também conhecida por tripanossomiase africana, e alguns anos mais tarde, regressou como especialista para estudar e para tentar novas descobertas sobre as três variedades de moscas tsé-tsé e sobre o papel destes insectos no transporte do parasita causador da doença (o Trypanosoma brucei).
No momento em que chegou sorridente, com o passaporte na mão, as autoridades tinham interceptado um importante carregamento de armas ilegais, de origem francesa, que teria como objectivo cair nas mãos de uma facção rebelde. Apanhado na confusão, o jovem médico foi interrogado e violentamente agredido, de que resultou um estado de afonia total. Como não conseguia falar, apenas chorar, foi considerado espião não colaborante e, consequentemente, condenado à morte.
Vincent percebia razoavelmente o dialecto sango, pelo que se pôde aperceber que lá fora decorria o meu julgamento.

-És jornalista?
- Como sabes?
- Entendo o que dizem...Estás aqui porquê? Perguntou-me com a voz trémula.
- Sou jornalista sem patrão e um escritor sem editora. Escritor...tenho um romance na gaveta.
- E de que tratava o teu romance?
- Era a história de um casal de jovens em que ela acabava por se apaixonar pelo pai dele. Aí começava uma triangulação amorosa, perigosa, em que ela se dividia de forma manipuladora entre a paixão, o carinho, a ingenuidade do filho e a perversão do pai. Tudo isto condimentado com uma verdadeira guerrilha psicológica, episódios do dia-a-dia, reflexos do bem e do mal, álcool e drogas. Ela revelava-se manipuladora, sem escrúpulos e até devassa, como uma das piores vilãs do Antigo Testamento, a rainha Jezebel. Mais tarde, encontraram-na morta...
Enfim, uma história que não convenceu a minha editora.

(o silêncio fez-se ouvir)

- Eles odeiam jornalistas...eles odeiam toda a gente. Desabafou Vincent batendo com a cabeça na parede.

Fui interceptado por uma patrulha, na bifurcação de Sibut, quando me dirigia para Kaga Bandoro, onde se encontra uma das 3 subdelegações do Comité Internacional da Cruz Vermelha. O militar que me interpelou só falava sango, tentei explicar que era voluntário da Cruz Vermelha , mostrei o logótipo, mas quando me revistaram e encontraram a minha carteira de jornalista, o militar não teve contemplações e tratou-me como se eu fosse um assassino.
Na sombra do conflito armado, desencadeado entre as forças rebeldes e o governo, milhares de civis foram mortos e estrupados, as casas e as lojas saqueadas. As acusações de crimes sexuais são detalhadas e substanciais.

A alvorada irrompeu com a algazarra dos militares, num caos feito de ordens, gritos, movimentações e gargalhadas que exalavam violência e ódio. Percebia-se pelo manuseamento, pelo respirar metálico das AK-47. O ferrolho da porta rolou, eu e o Vincent demos as mãos. Tremíamos. O primeiro militar a entrar no calaboiço, com um pontapé certeiro nas nossas mãos, desfez aquele enlace de medo e cumplicidade.
De seguida, puseram-me fora do casebre de forma agressiva. Vincent continuou lá dentro. Ao tentar pôr-me de pé, deparei-me com aquilo que parecia ser um pelotão de fuzilamento.
O militar que me roubou o telefone, me deu o pontapé nas costas e me esmagou a mão leu-me em voz alta, em dialecto sango, algo que eu não entendi mas que presumo ser a sentença.
Em menos de 24 horas houve julgamento, sem direito a defesa, e foi preferida a sentença. Aqui a (in)justiça é célere. Após a leitura do veredicto o pelotão assume uma postura mais formal, os soldados dispõem-se em posição de disparo e colocam-me na frente do pelotão, a cerca de dez metros.

Estou perante as famosas «Kalashnikov» AK-47, projectadas pelo general russo Mikhail Kalashnikov, a arma mais traficada no mundo. Pouco usuais em fuzilamentos. Mas em tempo de guerra não se limpam armas, não é verdade?
Onde estão as espingardas com uma só bala? Qual destes matadores receberia uma arma apenas com um bala falsa?

A coragem não existe. O medo é o verdadeiro motor dos actos heróicos. Mark Twain escreveu que a coragem é a resistência ao medo, o dominio do medo e não a sua ausência. Para mim, estar à frente de um pelotão de fuzilamento com serenidade, sim, estou muito calmo, não é um acto de coragem ou de heroísmo, é o reflexo do medo. O pavor relaxou-me. Recordo, nestes últimos instantes da minha vida, fuzilamentos famosos como o do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, o do Imperador Maximiliano quando a monarquia foi derrubada no México, os «famosos» fuzilamentos de Goya. Mas porque não me lembrei disto? De escrever um romance que incluísse fuzilamentos, códigos, enigmas, chaves de ouro maciço que abrem portas inexistentes, sinais divinos, as pessoas iam gostar, a minha editora ia adorar...

O militar aproximou-se de mim e estendeu-me um maço de cigarros. O último desejo?

(Mas tinha deixado de fumar, fazia-me mal)

O militar dá uma ordem, o pelotão fica em sentido. Outra ordem, o pelotão aponta as armas, outra ordem...
Subitamente, o processo é interrompido pelo «Magic Time», de Van Morrison, do som polifónico do meu telemóvel que continua no bolso da camisa do militar que comanda as operações.
O pelotão de atiradores soltou uma gargalhada em uníssono. O militar, irritado, dá uma ordem e o pelotão regressa à posição de «à vontade». Tira o telemóvel do bolso, estende-mo e desenha o sorriso mais cinico que vi nos meus 45 anos de vida.

- Parabéns meu querido. é a Francine, estás a ouvir-me? Fui ter contigo ao jornal, disseram-me que te tinhas despedido; encontrei o Remy, disse-me que foste para África. Tenho tantas saudades tuas, não posso viver sem ti, regressa...fui uma parva...não podia deixar passar o dia do teu aniversário sem te dizer isto...e tenho uma prenda para ti: a editora escreveu-te uma carta, quer publicar o teu romance, imagina, ...diz qualquer coisa, por favor...
Bip...bip...bip...bip...bip









Um comentário:

  1. Meu amigo, como sempre, um texto louco em devaneios controlados... muito giro.
    abraço
    fsanchez

    ResponderExcluir