texto e fotos: manolo
«World Food Programme»,
o programa alimentar das Nações Unidas em Moçambique, tem os armazéns centrais no
Chimoio, no Caia, em Quelimane e em Tete. A partir daqui os produtos são
distribuídos para mais 490 armazéns secundários que se encontram nas aldeias,
junto às populações, e que são dirigidos por voluntários das ONG e das organizações
religiosas e estatais.
«Anda cá torradinha, eu
sou teu amigo. Comigo tu e os teus irmãos não passam fome, tens é que ser
meiguinha... e ficar caladinha».
FdP é voluntário do «World
Food Programme», um «benfeitor» condecorado pelos serviços «humanitários» prestados
em várias regiões de África. É um pequeno deus que tem na sua mão o poder de
decidir quem come e quem não come, enquanto um governador local aconselha as populações
a comerem frutos silvestres e a aumentar as orações.
Barika (que significa a
afortunada, a feliz) perdeu os pais na guerra civil de Moçambique. Com doze
anos apenas viu-se confrontada com a sua sobrevivência e com a dos quatro irmãos
mais pequeninos que a tratam por «mana-mãe». Com uma vida que mais lhe parece
uma câmara de tortura, entrega-se aos desejos lascivos de FdP como um cadáver
que desce as águas sombrias das profundezas do mar. O corpo do homem exala um cheiro
fétido, como se tivesse sobre si uma posta de carne putrefacta mas viva,
branca, gordurosa, viciada, não compreendendo porque «foi condenada e punida
sem culpa formada», apenas por ter sobrevivido. Quem impõe esta vida aos
inocentes? Na luta pelo sustento havia que optar entre entregar o seu corpo ou deixar-se
passar fome a si e aos seus irmãos, tornando-se evidente a cada dia que passava
que nenhuma das opções era vencedora. FdP exige que Barika seja «cúmplice» de
um pacto de silêncio, precisamente o silêncio do preço da sua sobrevivência e
dos seus irmãos pequenos.
Tinha passado a noite em
claro, acordada havia demasiadas horas, e o seu corpo começava a acusar a
fadiga. Aquele pensamento de uma alma ténue como um fio de água que brota de
uma fonte corria-lhe constantemente.
O dia amanhecia na aldeia,
as mulheres varriam as eiras, outras, as mais velhas, arrastavam-se até ao
posto de distribuição na esperança de receber alguma dádiva de milho ou de
ervilha seca, embora soubessem de antemão que não havia esperança, que o camião
não chegava durante a noite silencioso, como um fantasma; e os seus corpos
secos, cheios dos demónios da fome, não as deixavam dormir.
Barika olhava para longe,
para muito longe, para um vazio tão frio como o mais frio metal. O seu irmão
mais pequenino, Bahir (que significa brilhante), perguntou-lhe:
– Mana-mãe, estás triste?
Barika, disfarçando as
lágrimas, respondeu:
– Não meu querido, estou
só a pensar.
– A pensar em quê?
Barika tentou sorrir,
passou-lhe a mão pela cabeça, deu-lhe um beijo e ao mesmo tempo disse-lhe:
– Gostava de voar.
O menino deu uma
gargalhada e, meio embaraçado meio admirado com o extravagante desejo da irmã
mais velha, respondeu-lhe:
– Gostavas de voar como o
Atobá? E levavas-me contigo?
Antes que respondesse, um
moço, a mando de FdP, chamou Barika ao posto. Compungida, ergueu-se como que
segurando o ventre, beijou Bahir e seguiu de cabeça baixa até ao posto de
distribuição dizendo para si mesma:
«Não sei que dor é esta
que me assola. Não sei se é uma, se são muitas. A minha vida parece um molho de
serpentinas desgarradas ao vento, bocados de vida à deriva, entre corpos sem
alma, indiferentes, máscaras, mortos vivos. Sou uma alma que se esvazia cada
vez mais num rumo nem sentido.»
FdP aguardava Barika à
porta do posto, com um sorriso, de cerveja na mão. Chupou pela última vez o
cigarro e meteu-se para dentro. Quando ele chegou à porta do posto já ele estava
sentado na cadeira giratória de madeira, ligeiramente afastada da secretária,
com um sorriso que exalava das orbitas uma mistura de poder e de cinismo, de
maldade e de vício, um olhar a que Barika nunca se habituara.
O posto era um pequeno
cubículo dentro de um armazém estreito mas comprido, uma obra que ficara dos
tempos coloniais; tinha uma pequena porta independente ao lado do grande portão
de ferro onde os camiões do «WFP», das Nações Unidas, descarregavam, uma vez
por mês, toneladas de ervilha seca, milho, farinha, feijão e açúcar para servir
uma população numerosa, sem recursos e muito vulnerável (na sua maioria pessoas
infectadas com o vírus HIV).
O cubículo era sombrio,
tinha uma escrivaninha com uma esteira rolante atafulhada de papéis. Em cima um
candeeiro de secretária, em latão, dos anos 50, pilhas de papéis e vários
cinzeiros repletos de beatas; um pouco mais ao lado um sofá gasto pelo tempo,
torturado por pilhas de papéis e duas almofadas que mais pareciam duas carteirinhas
de chá depois de usadas. Na parede um relógio-carrilhão da marca Herweg,
parado, coberto de uma camada fina de pó, como um véu de catedral apoiado numa
teia de aranha.
De pernas abertas e a
balancear-se de um lado para o outro, diz-lhe: «Entra, não tenhas medo, não te
faço mal». Barika aproximou-se e, sem levantar os olhos do chão, ficou imóvel
como uma estátua. «Amanhã vamos receber um camião de alimentos e não me vou
esquecer de ser bem generoso para ti.» Aproximou-se dela arrastando a cadeira
cujas rodas chiaram estridentemente, assustando as sete vidas de um gato que se
encontrava por debaixo da secretária. Pegou-lhe nos braços e obrigou-a a
ajoelhar-se à sua frente. Sem grande resistência Barika acedeu.
Um rodopio de sentimentos
contraditórios, um fluxo e refluxo de ódio invadia-lhe a cabeça como se tivesse
bebido uma poção psicotrópica, como se se encontrasse numa encruzilhada onde nenhum
dos caminhos faz sentido culminando num precipício sem fim. FdP, ao mesmo tempo
que lhe cobra a sobrevivência, com uma mão acaricia-lhe o longo pescoço e com a
outra massaja a sua própria zona genital e repete-lhe: «Torradinha, amanhã vais
receber muita comida para ti e para os teus irmãos, vais ser meiguinha, não
vais?» Ao mesmo tempo desaperta a braguilha e expõe o pénis erecto, dando um
impulso ao corpo como se fosse uma investida. Barika, ajoelhada, mantém-se
imóvel. FdP, sem sorrir, sussurra-lhe: «Vá lá, pensa nos teus irmãos». A alma
da jovem consome-se em autocombustão lenta. De repente, como uma faísca, uma
chama espontânea, como se sarasse todas as cicatrizes, apoderou-se dela como
uma maldição. Levanta a cabeça, sorri, passa muito lentamente a língua pelos
lábios, grandes e bem desenhados, com a mão agarra o pénis, pressiona o corpo
cavernoso, a pressão descontrai e devolve o sorriso ao abusador que fecha os
olhos e se estende na cadeira lançando a cabeça para trás. Barika observa-lhe a
excitação com um certo prazer no ritual, e, num gesto rápido, conciso, como se
fosse um relâmpago, decepa-o! Com um punhal ferrugento que não brilha ao sol,
separa-lhe o pénis totalmente do corpo. Ele, como um monstro ferido corre para
o exterior aos gritos ensurdecedores, numa agonia estridente. Barika manteve-se
de joelhos e deixou cair o punhal na poça de sangue.
O abusador é levado para a
cidade da Beira, de onde segue de helicóptero para a África do Sul, onde uma
equipa de cirurgiões vai tentar repor o que perdera.
Barika é encarcerada num
velho barracão de estilo colonial, redondo como um moinho e com uma porta de
grades de ferro que fica de frente para aldeia, enquanto aguarda a transferência
para a prisão da cidade da Beira; muito provavelmente
este espaço terá servido para guardar palha, cordas e outros pequenos
utensílios na época colonial portuguesa. Dos autos da detenção consta que a
jovem atacou de má-fé o digno voluntário das Nações Unidas para lhe extorquir
dinheiro e alimentos.
Acostumados ao
assistencialismo das ONG, as populações vêem em qualquer estrangeiro uma
hipótese de sobrevivência.
Barika é alvo de rituais
de maldição por parte da população da aldeia, que teme que as dádivas de
alimentos sejam interrompidas pelo hediondo acto da jovem. Apenas os quatros
irmãos pequenos se juntam à grade chorosos: «Mana-mãe, vem connosco». Barika
não chora e, na sua ingenuidade roubada, percebe que chegou à encruzilhada dos
caminhos sem sentido.
Durante a noite olha para
a lua e anseia pelo halo de um anjo que lhe diga que o seu mundo não está agrafado
à injustiça. Barika não chora, já desaprendeu de chorar, deseja esconder-se nas
trevas, talvez as trevas sejam a única luz.
O dia mal tinha acabado de
nascer e o pequeno Bahir correu para o velho barraco. Agarrou-se às grandes e
gritou: «Mana-mãe, mana-mãe.» A mana-mãe não lhe respondia e apenas conseguia
ver os pés suspensos da irmã. O corpo balançava, lentamente, enforcado na corda presa na asna do barracão. O pequeno Bahir, sem perceber, ansioso e com a
respiração ofegante gritava: A mana-mãe já sabe voar como o Atobá, já sabe voar,
leva-me contigo mana-mãe!
Nota do autor: A independência
de Moçambique, a 25 de Junho de 1975, não representou o início de uma era de
prosperidade mas de um conflito aberto que degenerou rapidamente numa
catástrofe: uma longa guerra civil que fez mais de um milhão de mortos e quatro
milhões de deslocados. A guerra civil em Moçambique, ou guerra de
desestabilização, durou 16 anos, entre 1976 e 1992, tendo tido como resultado
um país devastado e uma população esfomeada e doente, vivendo das ajudas
distribuídas pela comunidade internacional.
Mais de 450.000 crianças
de idade inferior aos 15 anos foram mortas, 7.000 ficaram deficientes devido às
minas, mais de 250.000 ficaram órfãs e à mercê do acaso, mais de 50.000 pessoas
foram amputadas. As crianças foram submetidas a repetidas experiências
traumáticas: ameaças de morte, vítimas de terror, agressões, processos
sistemáticos de desumanização, fome, sede, má nutrição, exploração, abuso
sexual e envolvimento em actividades militares.
A acção das Nações Unidas,
através do «World Food Programme», tem sido a tábua de salvação para muitos
moçambicanos, porém, continuam a sofrer na pele, sobretudo as crianças, a crueldade
e os abusos, incluindo os sexuais, por parte de quem supostamente estará no
terreno para os ajudar.
Esta história, baseada em
factos reais, é apenas um dos muitos relatos de abusos perpetrados por
voluntários sem escrúpulos, que se introduzem nas ONG apenas para satisfazer os
seus mais perversos desejos. Os nomes são, naturalmente, fictícios e o autor
escolheu as iniciais FdP para o abusador, que o leitor, se assim entender, pode
ler: F… da P…
Excelente!!! Mais uma que nos deixa a pensar, infelizmente uma realidade... ha muitos FdP por esse mundo fora...
ResponderExcluirNestes países torna-se ainda mais grave, o aproveitamento da situação difícil das pessoas, infelizmente não nos vejo, a nós portugueses, a afastar dessa situação, mas a regredir.
Arrepiante, mas infelizmente dolorosamente REAL!!!
ResponderExcluirUma «homenagem», aqui no ponto onde mais dói às pessoas normais - as crianças - a todos os FdP deste mundo!
Obrigado Manolo por mais este seu depoimento...