sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Desertor


Texto: Manolo
Foto: Jorge Soares



A chuva cai miudinha. As luzes de natal das Galerias Lafayette Haussmann parecem convencer-nos de que vivemos no melhor dos mundos. O meu, infelizmente, desmoronou-se.

A «Chemin», a minha eventual editora, não aceitou publicar o romance que andei a escrever durante o último ano e meio. Francine, a minha namorada, acabou a relação comigo - por telemóvel - porque no último ano e meio não lhe dei a atenção que ela achava que merecia. Concordei.
Esta manhã não participei na habitual reunião semanal dos quadros da empresa e entreguei a minha carta com o pedido de demissão ao próprio presidente.

Nessa carta, eu referia que depois de quase 25 anos de total dedicação ao jornal, e à empresa, onde, todas as semanas, na habitual reunião ele pôde constatar o empenho e o entusiasmo que dediquei à redacção, quase 24 horas por dia, participando em projectos, ideias, entrevistas, investigações, inovações, tanta coisa...,tanta coisa que me fez passar ao lado de outras tantas igualmente importantes, como o amor, a familia, os amigos...e, porque não, eu próprio. Fui, como o presidente tantas vezes disse, uma «máquina», consciente e produtiva, de entrega total a este jornal.
Hoje, na habitual reunião semanal, o presidente deu pela minha ausência, pelo meu silêncio. É verdade, não estou doente, não ando em reportagem, não faltei. Desertei!
Os meus amigos desaconcelharam-me; a minha ex-mulher diz que eu sou um irresponsável sem consideração pelo ordenado que tenho; os meus vizinhos, perante o quadro de desemprego, julgam-me severamente. Pode ser que todos tenham razão, mas eu quero desertar, preciso de o fazer!

Na reunião de hoje, pela primeira vez em tantos anos, estarei ausente, melhor, estarei presente, mas de forma diferente: «estarei» naquela cadeira vazia onde nem uma bomba interromperá o meu silêncio.
Ainda não sei para onde vou, mas para onde for quero ver a terra a namorar com a lua; o sol a correr no astro até cair de cansaço ao final do dia, tocar nas estrelas como o dedo, uma a uma; quero ouvir o resfolegar dos cavalos, o bafo do vento a lamber-me a cara; quero tornar-me um ser improdutivo cujo espírito errante pára no detalhe impensável.
Para os que ficam, especialmente para o presidente, desejo que continue a seguir atentamente a bolsa, as audiências, as vendas, a verificar a cada dia os mapas e as curvas de crescimento.
Mais tarde, bastante mais tarde, a sua fortuna será incomparável, a minha será outra. De qualquer maneira, no destino final que a todos nos está reservado, a seis palmos e meio abaixo da terra, nem a sua nem a minha nos servirão para nada.

Enquanto as luzes de natal das Galerias Lafayette Haussman insistem em nos alimentar a esperança, a minha esfuma-se entre as pessoas que, de um lado para o outro, com a ancestral estratégia da formiga, e numa movimentação que parece ter sido ensaiada até à exaustão, parecem felizes transportando pacotes e sacos, presentes para os outros e para si próprios. As crianças fogem do pai natal, os vendedores de castanhas assadas perfumam as ruas e prometem aconchego. Os amantes, parados, olhos nos olhos, despedem-se em silêncio e escondem a mágoa da separação com as abas dos guarda-chuvas. O Natal não propicia as relações proibidas, proíbe os encontros, é uma época em que o pensamento, como uma velha engrenagem, mói e remói a vontade reprimida, a lembrança dos bons momentos. É o regresso à realidade, à familia, às contas para pagar, aos presentes hipócritas, à falta de carinho quando ele é preciso e não pode ser partilhado.

Continua a chover, agora com mais intensidade, e dói-me a cabeça. Entro na farmácia da L'Opera Mogador, compro um pacote de aspirinas e engulo duas a seco, dirijo-me de seguida para a livraria L'Astrolabe, de livros de viagens, que fica ali perto, na rua de Provence, para dar um abraço de despedida ao Remy.
- Então vais-te embora assim? Sem mais nem menos?
- O que fico cá a fazer?
- E a Francine? Fiquei calado.
- Porquê para a República Centro-Africana?
- Sei lá. África é como um alvo e quero acertar bem no meio...talvez me junte ao Comité Internacional da Cruz Vermelha, que acompanha a situação humanitária, é uma ideia. Sabes que a República Centro-Africana é um dos países africanos com maiores índices de mortalidade até aos cinco anos e nas mulheres? Estima-se que em cada semana morram perto de 420 crianças nos confrontos entre as forças governamentais e os grupos rebeldes.
- Merda de mundo. Não há nada que eu possa fazer para...?
- Podes. Arranja-me um bom mapa da RCA.
- Quando partes?
- Amanhã. Tenho voo directo da Air-France para Bangui.
Remy beijou-me, abraçou-me e sussurrou-me ao ouvido: - és o tipo mais teimoso que conheço. Ao mesmo tempo batia-me com o mapa na nuca enquanto tentávamos disfarçar as lágrimas.

Quatro dias depois.

A pancada violenta com a bota na região lombar fez-me entrar naquele calaboiço assustador de forma pouco formal. O telemóvel caiu-me do bolso e, quando me estiquei para o apanhar, a mesma bota esmagou-me a mão. O militar apanhou o telemóvel, sorriu e guardou-o no bolso da camisa.
O calaboiço era pequeno, não tinha janela nem luz. Entre as frestas das tábuas que faziam de porta penetravam farrapos da claridade frouxa do crepúsculo, intermitentes devido às sombras provocadas pela movimentação dos militares que pareciam gritar uns com os outros.
- Fomos condenados à morte.
A afirmação proveio de um dos cantos da divisão. Não me apercebi que havia ali mais alguém. O homem estava sentado, parecia jovem, cerca de 30 anos, e tinha uma ferida feia na testa resultante de uma coronhada.
-Quem és tu?
- Sou um condenado à morte.
- Porquê?
-Porque tenho um passaporte francês.

Vincent é francês, e vivia na Guiana francesa. Nos finais dos anos 80 esteve na República Centro-Africana para completar a sua tese sobre a doença do sono. Especializou-se nesta doença, também conhecida por tripanossomiase africana, e alguns anos mais tarde, regressou como especialista para estudar e para tentar novas descobertas sobre as três variedades de moscas tsé-tsé e sobre o papel destes insectos no transporte do parasita causador da doença (o Trypanosoma brucei).
No momento em que chegou sorridente, com o passaporte na mão, as autoridades tinham interceptado um importante carregamento de armas ilegais, de origem francesa, que teria como objectivo cair nas mãos de uma facção rebelde. Apanhado na confusão, o jovem médico foi interrogado e violentamente agredido, de que resultou um estado de afonia total. Como não conseguia falar, apenas chorar, foi considerado espião não colaborante e, consequentemente, condenado à morte.
Vincent percebia razoavelmente o dialecto sango, pelo que se pôde aperceber que lá fora decorria o meu julgamento.

-És jornalista?
- Como sabes?
- Entendo o que dizem...Estás aqui porquê? Perguntou-me com a voz trémula.
- Sou jornalista sem patrão e um escritor sem editora. Escritor...tenho um romance na gaveta.
- E de que tratava o teu romance?
- Era a história de um casal de jovens em que ela acabava por se apaixonar pelo pai dele. Aí começava uma triangulação amorosa, perigosa, em que ela se dividia de forma manipuladora entre a paixão, o carinho, a ingenuidade do filho e a perversão do pai. Tudo isto condimentado com uma verdadeira guerrilha psicológica, episódios do dia-a-dia, reflexos do bem e do mal, álcool e drogas. Ela revelava-se manipuladora, sem escrúpulos e até devassa, como uma das piores vilãs do Antigo Testamento, a rainha Jezebel. Mais tarde, encontraram-na morta...
Enfim, uma história que não convenceu a minha editora.

(o silêncio fez-se ouvir)

- Eles odeiam jornalistas...eles odeiam toda a gente. Desabafou Vincent batendo com a cabeça na parede.

Fui interceptado por uma patrulha, na bifurcação de Sibut, quando me dirigia para Kaga Bandoro, onde se encontra uma das 3 subdelegações do Comité Internacional da Cruz Vermelha. O militar que me interpelou só falava sango, tentei explicar que era voluntário da Cruz Vermelha , mostrei o logótipo, mas quando me revistaram e encontraram a minha carteira de jornalista, o militar não teve contemplações e tratou-me como se eu fosse um assassino.
Na sombra do conflito armado, desencadeado entre as forças rebeldes e o governo, milhares de civis foram mortos e estrupados, as casas e as lojas saqueadas. As acusações de crimes sexuais são detalhadas e substanciais.

A alvorada irrompeu com a algazarra dos militares, num caos feito de ordens, gritos, movimentações e gargalhadas que exalavam violência e ódio. Percebia-se pelo manuseamento, pelo respirar metálico das AK-47. O ferrolho da porta rolou, eu e o Vincent demos as mãos. Tremíamos. O primeiro militar a entrar no calaboiço, com um pontapé certeiro nas nossas mãos, desfez aquele enlace de medo e cumplicidade.
De seguida, puseram-me fora do casebre de forma agressiva. Vincent continuou lá dentro. Ao tentar pôr-me de pé, deparei-me com aquilo que parecia ser um pelotão de fuzilamento.
O militar que me roubou o telefone, me deu o pontapé nas costas e me esmagou a mão leu-me em voz alta, em dialecto sango, algo que eu não entendi mas que presumo ser a sentença.
Em menos de 24 horas houve julgamento, sem direito a defesa, e foi preferida a sentença. Aqui a (in)justiça é célere. Após a leitura do veredicto o pelotão assume uma postura mais formal, os soldados dispõem-se em posição de disparo e colocam-me na frente do pelotão, a cerca de dez metros.

Estou perante as famosas «Kalashnikov» AK-47, projectadas pelo general russo Mikhail Kalashnikov, a arma mais traficada no mundo. Pouco usuais em fuzilamentos. Mas em tempo de guerra não se limpam armas, não é verdade?
Onde estão as espingardas com uma só bala? Qual destes matadores receberia uma arma apenas com um bala falsa?

A coragem não existe. O medo é o verdadeiro motor dos actos heróicos. Mark Twain escreveu que a coragem é a resistência ao medo, o dominio do medo e não a sua ausência. Para mim, estar à frente de um pelotão de fuzilamento com serenidade, sim, estou muito calmo, não é um acto de coragem ou de heroísmo, é o reflexo do medo. O pavor relaxou-me. Recordo, nestes últimos instantes da minha vida, fuzilamentos famosos como o do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, o do Imperador Maximiliano quando a monarquia foi derrubada no México, os «famosos» fuzilamentos de Goya. Mas porque não me lembrei disto? De escrever um romance que incluísse fuzilamentos, códigos, enigmas, chaves de ouro maciço que abrem portas inexistentes, sinais divinos, as pessoas iam gostar, a minha editora ia adorar...

O militar aproximou-se de mim e estendeu-me um maço de cigarros. O último desejo?

(Mas tinha deixado de fumar, fazia-me mal)

O militar dá uma ordem, o pelotão fica em sentido. Outra ordem, o pelotão aponta as armas, outra ordem...
Subitamente, o processo é interrompido pelo «Magic Time», de Van Morrison, do som polifónico do meu telemóvel que continua no bolso da camisa do militar que comanda as operações.
O pelotão de atiradores soltou uma gargalhada em uníssono. O militar, irritado, dá uma ordem e o pelotão regressa à posição de «à vontade». Tira o telemóvel do bolso, estende-mo e desenha o sorriso mais cinico que vi nos meus 45 anos de vida.

- Parabéns meu querido. é a Francine, estás a ouvir-me? Fui ter contigo ao jornal, disseram-me que te tinhas despedido; encontrei o Remy, disse-me que foste para África. Tenho tantas saudades tuas, não posso viver sem ti, regressa...fui uma parva...não podia deixar passar o dia do teu aniversário sem te dizer isto...e tenho uma prenda para ti: a editora escreveu-te uma carta, quer publicar o teu romance, imagina, ...diz qualquer coisa, por favor...
Bip...bip...bip...bip...bip









terça-feira, 3 de novembro de 2009

O anjo do panamá



Texto e fotos: Manolo
Estava uma noite escura como breu e a viagem previa-se dificil, os quase cem quilómetros entre Rosso e Djama estavam praticamente intransitáveis, as águas do rio Senegal chegavam a atingir, por vezes, as partes mais altas da pista: uma verdadeira odisseia.

Era por volta das 21 horas quando o Land Rover Defender «130» atravessou a fronteira em Djama. O destino era a ilha de Saint-Louis, classificada como património mundial pela UNESCO, localizada no noroeste do Senegal, perto da foz do rio do mesmo nome e a 320 quilómetros a norte de Dakar, onde uma equipa de seis cientistas - dois espanhóis, um francês, um norueguês, um canadiano e uma portuguesa, Helena - iria desenvolver um trabalho de pesquisa no rio Senegal, em cooperação com o «Centre National de la Recherche Scientifique» do Senegal e com o patrocinio da União Europeia.

A equipa não quis jantar no Hotel de la Poste, praticamente vazio, foram todos para um restaurante francês muito simpático que havia nas imediações, com música ao vivo; a excepção foi Helena que, a pretexto de estar cansada, recusou amavelmente o convite do colega francês Gustave, apesar da insistência deste.

Helena preferiu a esplanada coberta do hotel, pediu um gin-tónico e ficou a ver a chuva a cair: os vendedores arrumavam precipitadamente o artesanato junto ao velho edificio da «Aeropostal», as pessoas corriam, havia um vaivém ininterrupto dos pequenos autocarros com gente aos magotes no interior e outros tantos pendurados, as crianças chapinhavam nas poças. Um véu de neblina caía sobre a ilha e, qual fria mortalha do esquecimento, envolvia os velhos edifícios de arquitectura colonial de meados do século XIX.

Não tinha fome nem sono, mas estava exausta. No céu nem sequer uma estrela luzia, um casal divinamente formoso que passava despertou-lhe atenção, trocaram sorrisos e persegui-os com o olhar até desaparecerem na esquina.

Helena é morena e usa o cabelo muito curto; um céu de sardas sobressai-lhe do rosto fino. Não sendo bonita, exala exostismo, sensualidade, elegância e charme. É uma mulher linda de se ver.
Apeteceu-lhe um cigarro, não que fumasse muito, mesmo assim...
No momento em que o pôs na boca surgiu-lhe à frente um zippo dourado, que uma mão firme de homem, num gesto implacável, fez faiscar esfregando a roldana de metal rugoso na mola.
-Obrigada
-De nada. Francesa?
-Não, sou...
-Posso fazer-lhe companhia? Dois gins-tónicos como muito limão, por favor, pediu ao empregado!
Helena, meio atordoada e confundida com a ousadia, gostou da surpresa. O homem que lhe acendeu o cigarro e a alma, cerca de 35 anos, sentou-se, tirou o panamá da cabeça e colocou-o sobre a mesa.

- Gosta da chuva?
Acenando afirmativamente com a cabeça, respondeu: - e adoro o cheiro da terra molhada.
- A chuva é o mar do céu - disse-lhe ele num tom doce enquanto batia o copo no dela.
- Quando era pequena perguntava ao meu pai porque é que chovia e ele respondia-me que era para fazer a terra feliz.
- Resposta sábia. Esse firmamento que tem no rosto herdou-o de seu pai?
Helena concordou, corou, baixou os olhos, abriu a mão e com o dedo médio percorreu as formas suaves do panamá, como se percorresse o passado.
- Como se chama?
- Peço-lhe desculpa nem me apresentei, trate-me por Jean.
- Eu sou Helena.
- Helena, como a filha de Zeus? E o que faz?
- Sou professora e você?
- Sou...mercador, é isso mesmo, sou mercador. Ao mesmo tempo que esboçava um sorriso que já a tinha encantado.
- Em que área?
- Na área dos sonhos, da fantasia, negoceio com anjos e querubins e cruzo os céus da terra à procura das melhores utopias - concluiu com um dos seus belos sorrisos de cujo encanto tinha o segredo e que era, talvez, a mais clara explicação para o seu charme. Era bem constituido, mãos grandes, corte de cabelo «vintage hair» que lhe dava um ar misterioso, de sagaz aventureiro.

- Já há muito tempo que não via um panamá tão bem feito. Suave, sem costuras, é um autêntico panamá. Foi numa das suas viagens que o encontrou? Já esteve no Equador?
São feitos à mão no Equador. Sem costuras, suave ao tacto. Este é o mais clássico dos chapéus para a estação cálida - um mito da elegância.
Os panamás não se fazem no Panamá. E isto já diz muito sobre a história e a tradição centenária dos «sombreros» mais clássicos da estação estival. O Panamá foi durante um par de séculos um importante porto de embarque, mas na realidade os elegantes chapéus brancos, cujos destinatários eram os membros da alta burguesia europeia e norte-americana, fabricavam-se (e ainda se fabricam) no Equador, para além de um reduzidissimo número de países da América do Sul.

Fabricados...será mais correcto dizer criados. Porque os verdadeiros panamás são uma verdadeira obra de artesanato comparável a um tapete feito à mão, como o expressou muito bem Tom Wolf, o autor do livro A Fogueira das Vaidades: «O prazer de tê-lo e de pô-lo compensa os sacrificios que os pobres passam em produzi-lo».

Não é a única homenagem conformista ou politicamente correcta. Basta observar um pouco como se fazem. Obtidos a partir de uma espécie de folha de palmeira conhecida por «toquilla» (corta-se antes que alcance o metro e meio de altura), a manufactura de um panamá de luxo exige de um a dois meses de trabalho aos indigenas que o tecem, impecavelmente, sem costuras.
As fibras das folhas demolham-se durante alguns dias, ficando a escorrer à sombra de cabanas para se escolherem as mais elásticas e subtis. A tecedura começa pelo topo e realiza-se numa peça única. É um exercício de mestria que remonta, provavelmente, à arte dos antigos «mayas» no fabrico dos seus magníficos tecidos vegetais.
- Como é que percebe tanto de panamás? Perguntou Jean, estupefacto e totalmente fascinado com a eloquência da sua atraente interlocutora.
- É um chapéu mítico e era o preferido do meu avô, tinha vários...verdadeiros, feitos à mão no Equador.

A conversa prolongou-se pelo jantar, na elegantíssima sala Mermoz, decorada com motivos do correio aéreo que voava de Toulouse ao Rio de Janeiro, com uma das escalas em Saint-Louis, e do seu piloto mais famoso: Jean Mermoz. A sala estava vazia e proporcionava uma tranquilidade celestial. Helena e Jean estavam absorvidos pela conversa, trocando de vez em quando gestos carinhosos que acrescentavam à intimidade do jantar: uma paixão recíproca.

A libido entre os dois é notória pelos sinais gestuais que confirmam, no vinho degustado com prazer e encanto, e identificado por Jean como o símbolo do requinte: - Beber vinho e amar são instantes de total entrega. Helena molhou os lábios no «Chateau Petrus», e beijou apaixonadamente Jean. Este pegou-lhe na mão e quando chegaram junto à escadaria estreita levou-a ao colo até ao quarto 219; não parecia um vulgar quarto de hotel, móveis, objectos pessoais, quadros e retratos, pareciam ter uma relação directa, muito íntima, com o hóspede.
- Costuma ficar aqui muitas vezes?
- Fico sempre aqui. Tem uma vista soberba sobre o rio e a praça.
- Helena desviou o cortinado para ver; Jean, abraçando-a pela cintura, começou a beijar-lhe o pescoço...

De manhã, Helena acordou com um dedo de sol a acariciar-lhe o rosto. O dia estava bonito e ela feliz. Os seus olhos brilhavam e o seu corpo, adoçado por uma noite de amor, parecia ter mais energia do que nunca.
De repente, deu-se conta que estava sozinha. Não havia malas ou roupa espalhada, apenas móveis, objectos sem vida, sem memória. Objectos que só ganham brilho, quando há memória. Jean tinha partido, porquê?
Não chorou, mas os seus olhos ficaram tristes. Desceu, dirigiu-se à recepção e perguntou se o hóspede do quarto 219 já tinha saido?
- O recepcionista, admirado, balbuciou: - O hóspede do quarto 219? Esta noite não alugamos esse quarto...
- Um senhor chamado Jean não consta da sua lista? Costuma ficar sempre no quarto 219, veja lá, por favor, deve conhecê-lo.
- Jean? Quem costumava ficar nesse quarto era Jean Mermoz, o famoso aviador, mas morreu em 1936 no meio do Atlântico e agora o quarto é uma espécie de museu, quer visitá-lo? Tenho muito prazer em...
- Não se incomode, muito obrigado.

Helena sentou-se na sala Mermoz para tomar o pequeno almoço, fixou o olhar na imagem do piloto que lhe dá o nome, a qual, na noite passada não parecia estar ali naquela parede.
Gustave, o francês, aproximou-se:- Bom-dia, ontem quando viemos do restaurante ainda bati uma vez à porta do teu quarto, mas já devias estar a dormir...estavas tão cansada que dormistes como um anjo, não?
Helena, sem deixar de olhar para a imagem de Jean Mermoz, respondeu muito baixinho: - Como um anjo não, com um anjo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A «Perfect Day»


Text: Manolo
(Photo: Pablo Moreira. UNESCO)
Democratic Republic of the Congo. Since Goma, the stoic Galloper had been complaining of the «miserable life» it had been given. A rough life, no overhauls att all, no changing of filter, no rescrewing, well, without any kind service. Gauges didn't work; the suspension had long forgotten its function and the motor revealed an arrythmia as if its « sinus knot» couldn't stimulate the «heart». «It consumes some oil but it'ii manage», said the rent-a-car lad at the door of Hotel Lhusi while he poured the third litre of oil into the unfortunate Galloper. We guessed it would be a very bumpy ride until the bowels of the Virunga Mountains, where Emmanuel de Merode, the director of WildlifeDirect, was waiting for us, to guide us to the that superb gorilla world in Virunga National Park.




The day before, we flew in a old Antonov from Kinshasa to Goma. At first, we had intended to cross Congolese territory by jeep, but my dear friend and work pal from Invicta - the familiar name of Porto - Rui Newmann, the PNN (Portuguese News Network) correspondent in Africa, used to risky settings, was very frank: «Never cross Uganda by land because of the nasty movement that calls itself - Lord's Resistance Army», winch isn't fond of white people. Don't even think about it».




To attain the objective, there was "only" about 300 km ahead of us through the world's second largest tropical forest, excelled only by the Amazon region. However, I do not know why, I was worried and you...smiled.




Backpacks, the satellite phone, two packs of stale biscuits, three bottles of water, a blind trust on the GPS and some one dollar notes because there's always someone you need to bribe. Following the good tradition ordained by Mobutu « article 7 is valid for every Congolese, meaning...be resourceful!», this was our main equipment. After the legal and not so legal procedures, we penetrated the ex-Belgian Congo, and ex-Zaire forest. By late afternoon, we wanted to reach the first Virunga station, at the National Park, the first to be created back in 1925 and proclaimed World Heritage in 1979, and where gorillas are still being decimated at such an incredible rate thereby putting the species in danger of extinction.




Our eyes welled up with tears as they met a magnificence whose dazzling beauty overwhelmed us. Completely subdued by the spell of the tropical forest, we did not realize that the Galloper was beginning to die. We were roughly 85 km from our destination ehen I felt the motor seize up a bit and, right or wrong, I decided to stop and verify the oil level: completely dry. Nothing that I had not anticipated, but you were smiling and saying, everything would be all right. If the gauges had been working they would have complained a long time ago. With great strain, I moved forward only some metres to a small open area beside a track from where, in a valley 300 metres away, we could catch a glimpse of a waterfall whose waters sprang into a huge lake. There was nothing we could do. As if bewitched by luxuriant vegetation, we held hands and stolled like lovers in Central Park. The birds and the violent shudder of the leaves on the trees caused by the shaking of the more curious chimpanzees did not frighten you uneasy, and I felt your hand squeezing mine more tightly.


We unsuccesfully tried to contact Emmanuel de Merode through the sattelite phone; the connection was terrible and there was no signal. I searched through the Galloper hoping to find a can of oil, even if it was only that bulk truck oil that the rent-a-car lad poured down the "throat" of the first generation Mitsubishi motor. Zero!


It was very hot and we longed to dive into the waters of the lake but prudence is always a good advisor; it is suicidal to get into rivers and lakes of this country. Hippopotamus, for instance, are the animals that kill more people.


We tried again to contact Emmanuel de Merode. «Are you late? Ary you lost?» After we had explained the incident and given him our coordinates, he burst into laughter: « No problem, we will pick you up and we shall tow the jeep away, if needed. Be careful, do not get too near the lakes and stay calm. We will be there in no time».


The night was warm and on the ground threads of water flowed here and there gathering to form a minute and peculiar complex web that feeds brooks, rivers and lakes in a millenary ritual. We picked a dry spot and began preparing our supper. On huge green leaves we put the cookies and, as expected, I took care opening the water bottle with the same rite as if were the most exquisite Petrus wine. We shared the cookies with kisses and the atmosphere seemed soaked in overwhelming peace. Once in a while we heard howling screams and gorilla grunts, now sharp then gentle. Quiet, we stared at each other's eyes, and you would say: « it's remote», and you would kiss me. The perfume of the flowers, the leaves, the stems and bamboos soothed us. It was our love's perfume. Countless number of times we listened to Lou Reed's «Perfect Day», the only tune I had on my cellular; you came to dwell in my body. We were immersed within each other as we enjoyed the time we had together. We satiated our longing desire and, above our wet bodies, a firely candelabrum brigtened our passion, while «Perfect Day» echoed within the forest: «Oh it's such a perfect day / I'm glade I spent it with you / O such a perfect day / You just keep me hanging on...You just keep me hanging on...»


Before daybreak, we where suddenly awakened by the roar of a powerful motor. Bewildered, we hid ourselves in the almost impenetrable forest and kept quiet in fear it might be a rebel group. A huge Deutz truck stopped near the Galloper and rejoicing, we saw Emmanuel de Merode, who stepped out and offered thousands of excuses. «We only managed to get hold of this truck during the nigth. Pleas forgive me thousands of times for leaving you here alone for such a long time in the hands of the forest threats. My God, are you frightened? Oh, my poor lady, ehat a shame...» While Nogbobo, the engineer, a Mubti tribe pygmy, dumped some more litres of oil into the infortunate Galloper, and Emmanuel de Merode once more offered thousands of excuses, we looked into each other's eyes, smiled and our lips silently spoke: «Perfect Day».



terça-feira, 20 de outubro de 2009

«Mulheres,sabe como são as mulheres...»


Num francês incompreensível misturado com crioulo, o homem discute ao telemóvel. Percebo que a conversa é sobre dinheiro e, quando se referem verbas, o homem exalta-se, gesticula, afasta o telemóvel da orelha, olha para ele e grita, irritadíssimo.


Estou na fronteira de Wassadou, no Senegal. A divisão entre o Senegal, por uma pista de terra vermelha, lindíssima, com cerca de 4 quilómetros, e a fronteira guineense de Pirada é feita por uma corrente entre dois pequenos pilares de cimento e pela boa vontade deste homem. Quando se cala para ouvir o seu interlocutor - que parece ser uma mulher - o guarda fronteiriço fita-me de alto a baixo, com um olhar de poucos amigos, para logo virar costas e recomeçar a gritaria. Pressinto que não cheguei na melhor altura.


O Iveco Daily 4x4 está praticamente encostado à corrente que liga os dois pilares de cimento. Ao lado, o «escritório» do posto fronteiriço é composto por uma cobertura, duas cadeiras azuis de plástico, a secretária é um tronco de árvore cortada e, como «sala de espera» outro tronco, este maior e deitado, onde está sentado um jovem que observa o guarda de olhos arregalados.


Eu, ali especado com os passaportes e o famigerado «passe-avant» nas mãos, anseio pelo desfecho da discussão e, confesso, não sei o que se passa mas estou do lado dele. No meio da gritaria cada vez mais estridente, o guarda faz-me sinal para recuar o carro e, quase em simultâneo, para parar. Recuei talvez um metro e, agora, parece que estou cada vez mais longe.


Regresso à minha posição de assistente especado que presencia os arrufos do casal. O guarda está completamente fora de si, dá um pontapé numa lata velha de concentrado de tomate e esta não acerta no jovem que está sentado por um triz. As escleróticas dos seus olhos perdem a «brancura» amarelada e ficam vermelhas de raiva devido à dilatação dos vasos sanguíneos. Começo a ficar nervoso, pressinto que não cheguei na melhor altura.


O homem, que parece ter mais de cinquenta anos, é pouco formal no uniforme cor de areia, usa um chapéu de palha estilo colonial marcado pelo suor, amuletos coloridos ao pescoço, ostenta uma dentadura em ruínas e a sua ira exterioriza-se numa mistura estranha de brados e de catarro. Transforma cigarros em beatas à velocidade da luz, o suor escorre-lhe no rosto em cascata e, a ver pelo seu estado de fúria, o fluído é de muitas octanas. Não me atrevo a acalmá-lo. É um barril de pólvora na iminência de explodir. Agora anda às voltas numa espiral vertiginosa. O jovem levanta-se, e eu, especado e impávido, quiçá como a mulher de Ló transformada em estátua de sal às portas de Sodoma.


De repente, o guarda afasta o telefone da orelha, olha para ele, junta-o à boca, arregala os olhos e, com os dentes cerrados, pronuncia algo imperceptível ao mesmo tempo que o arremessa violentamente; este não se desfaz no chão porque o jovem protagoniza a defesa da tarde.


Silêncio na fronteira, no céu e na terra. O guarda afasta-se uns metros, o jovem continua com os olhos arregalados mas com o telefone na mão, e eu, siderado, tenho a certeza que não cheguei na melhor altura.


O guarda passa um lenço amarrotado e encardido pela cara enquanto segue na direcção do «escritório» e, com um aceno de mão, manda-me aproximar e diz-me: - excusez-moi monsieur, les femmes, monsieur, les femmes...vous savez. Ao mesmo tempo cospe na almofada de carimbo e timbra com a força da sua autoridade os nosso passaportes. Retribuo-lhe o comentário: - é preciso ter calma, sabe com são as mulheres, não é?

- Calma? Imagine que tenho 6 mulheres a quem sempre dei tudo, arroz, feijão, milho...e agora resolveram unir-se para me fazerem reivindicações, imagine o senhor.

- Realmente não imagino, disse eu.


O guarda manda o jovem abrir a corrente e pergunta-me: - não se importa de levar este moço até ao outro lado (Guiné) ? Desejo-lhe uma boa viagem e uma óptima estadia.

Quando chegámos a Pirada, pergunto ao moço: -onde é que queres ficar? Num português incompreensível, misturado com crioulo, responde-me: - fico aqui, tenho aqui uma cabra.

Texto e foto:Manolo

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O homenzinho da caixa de madeira


No pico da duna, deitado ao lado da minha inseparável companheira das noites de luar, a minha própria sombra, contemplava deslumbrado o céu de Msieb tatuado de estrelas cintilantes, vigiadas pro uma lua apaixonante.


Um homenzinho baixote, coberto do pescoço aos pés com a gandoura, de rosto seco e ossudo lembrando uma caveira, mas coberto de barbas , um olho vazio e dentes cavalares e amarelados, com uma caixa de madeira debaixo do braço aproximou-se e perguntou-me: - Gosta do meu deserto? Perplexo, respondi-lhe que sim, confirmando ao mesmo tempo com a cabeça. Então baixou-se, aproximou-se ainda mais de mim e pude sentir o impacto desagradável de uma forte halitose, valha-me deus, como se o fétido odor da morte se tratasse. Levantei-me de repente, ele, em bicos dos pés, arregalou o olho - a órbita vazia parecia a cratera de um vulcão em carne viva -, esboçou um sorriso cínico e sussurrou-me: - O deserto é a lâmpada mágica que liberta a alma.

Reconheci imeditamente o aforismo de Ibraim Al Koni e, antes de lhe perguntar quem era e o que fazia ali, num passo largo que agitava a gandoura, desapareceu para lá das dunas levando consigo a caixa de madeira debaixo do braço. Nunca mais o vi.


Moahmed, com o bule na mão e um copo na outra, deitava chá de menta de uma certa altura, alternadamente, de um lado para o outro. Repete o gesto diversas vezes e, perante a minha perplexidade, pergunta-me: - Há algum problema?

- Não, respondi-lhe, estive ali a conversar com um homenzinho...

- Com uma caixa de madeira debaixo do braço? Afaste-se dele! Esse desgraçado trás a morte com ele, mas nunca mais morre, tem mais de cem anos. Diz-se que foi o braço direito de Zaid Ouskounti, o último lider tribal a render-se aos franceses, em 1933. No dia em que foi feito prisioneiro cuspiu na cara de um sargento francês, este, raivoso, esvaziou-lhe o olho com a baioneta do fuzil. Desde então considerado um herói, jurou vingar-se...

- E como é que trás a morte consigo? Perguntei eu.

- Não sei, se calhar é ele a própria morte, mas afaste-se dele, por Alá! Dizem que na caixa que trás debaixo do braço guarda sempre o coração «enfarinhado» em areia da sua última vítima.

Explicou Moahmed, olhando para todos os lados como se estivesse a ser observado pela...pelo homenzinho da caixa de madeira, enquanto repunha chá no velho púcaro azul de esmalte.


Confrontei-me então com a morte? Perguntei a mim próprio . Sempre pensei que a morte fosse mulher e tivesse como fiel companheira uma gadanha fria e silenciosa. Saramago, no seu livro «intermitências da morte» , descreve-a nestes termos: « uma senhora morte como se quer, capaz de fazer tremer o chão debaixo dos pés, com a mortalha a arrastar levantando fumo a cada passo». Esta sim, é uma morte elegante, com personalidade, não uma morte zarolha e mal cheirosa que me arrancava o coração e o «enfarinhava em areia» , para o guardar dentro de uma caixa de madeira.


Mas, tinha chegado a minha hora. Prisioneiro dos grilhões das trevas que me arrastavam para as profundezas, chegava o irrevogável e improrrogável fim da minha existência. Eu lutava, não queria: ténues tentativas frustradas de liberdade. Sentia frio, o corpo gelava e as pontas dos dedos estavam azuladas como o velho púcaro de esmalte. O bafo do homenzinho da caixa de madeira envenenava a minha existência. Estava escrito, e o que está escrito tem muita força, já não era só o fétido odor da morte, já sentia a própria baba da morte, o coração «enfarinhado», aquela luz branca, e gritei...


-Então pá, adomecestes nas dunas? Quando demos por ti estava um camelo a lamber-te a cara, ainda nos fartámos de rir, o João até tirou umas fotografias...

Estremunhado, olhei ao redor: toda a gente se ria, Moahmed parecia uma criança a rir-se enquanto me estendia um chá num velho púcaro de esmalte azul.
Texto: Manolo
Foto: Luís Almeida

Do outro lado


Há mais de uma semana que não sabíamos o que era uma cama «a sério». Quando chegámos ao hotel, se lhe podemos chamar assim, a burocracia do «check-in» parecia interminável. De um lado nós, com a peculiar impaciência europeia, do outro lado o recepcionista, com todo o tempo do mundo.


A nossa viagem tinha sido emocionante, mas muito cansativa; estávamos completamente absorvidos pelo supremo objectivo de chegar ao quarto, tomar banho e dormir. Mas não era fácil. O recepcionista não desarmava e, num tom bastante delicado e pousado, perguntava um a um de onde vínhamos, se tínhamos feito boa viagem, que num dos sítios por onde passámos tinha lá um primo que já não via há muitos anos...bla, blá...blá, blá e mais blá, blá.


Enquanto o recepcionista mauritano praticava o seu francês, nós, completamente alheios ao magnifico entardecer , apressávamos o transbordo dos sacos sempre acompanhados daquela familiar auréola de pó que nos acompanhava desde o início.


O ar estava impregnado de perfumes exóticos. Os jacarandás, as roseiras e as buganvílias, tal como no poema de Jonh Hopkins, não nos deixavam ver, mas ouviamos o burburinho dos vendedores ambulantes e os gritos da crianças que vinham do outro lado, do lado da realidade desconcertante.


De repente, e do meio das buganvílias, surgiu um míudo, talvez com 10 ou 12 anos, que num francês perfeito perguntou: «precisam de um guia para vos mostrar todos os encantos desta terra abençoada por Alá?» A forma delicada como fez a pergunta desconcertou-nos. Ficamos estáticos a olhar para ele e, sem que disséssemos fosse o que fosse, retorquiu: «vejo que ainda não se instalaram, posso voltar mais tarde, descancem e sejam bem-vindos», desaparecendo em seguida entre as buganvílias, para o outro lado, o lado da realidade desconcertante.


Depois do jantar (leia-se: nosso jantar) o míudo apareceu e renovou o convite. Nós aceitamos. Chamava-se Aziz, tinha 12 anos e nasceu no Níger. Veio para a Mauritânia com o pai, que acabaria por desaparecer no mar. Nunca conheceu a mãe. Era um sobrevivente da realidade desconcertante.


De mão dada com a miséria, foi arrastado até Kiffa, sabe-se lá porquê. Era um miudo esguio, seco como uma cana, olhos enormes e brilhantes. Repetia com orgulho que tinha um amigo muito importante nos ralis. Num «Paris-Dakar» tinha conhecido, nem mais nem menos, que um senhor chamado Henri Pescarolo, um gigante do deporto automóvel. Aliás, a partir daí, o piloto francês enviava-lhe com alguma frequência roupas e livros.


Aziz gostava muito de ler e tinha uma apetência mutio especial para linguas. Falava francês, inglês, italiano, castelhano e arranhava o alemão.

Foi uma noite muito agradável, embora tívessemos sido verdadeiramente «bombardeados» com perguntas sobre Portugal: Aziz era ávido de conhecimento. Ficámos amigos. No final, perguntei-lhe quanto lhe devia.

- Rien Monsieur

- Nada? O que é que te posso oferecer?

Aziz esboçou um sorriso e, meio envergonhado, respondeu: - ofereça-me o colete que tem ali no jipe.

- O colete? O meu colete de estimação? N...Naquele momento o meu egoísmo ia-me traindo, mas não podia desapontar aquele novo amigo. Fui ao jipe, «despi-me» do meu egoísmo mesquinho, abri mão do colete e ofereci-lho.


Estávamos em 1991, decorria o épico «Paris-Dakar» com início em África, em Tripoli, atravessando o resto da Libia, o Níger, o Mali e a Mauritânia, para terminar em Dakar, no Senegal. Os finlandeses Ari Vatanen e Berglund preparavam-se para vencer, pela terceira vez consecutiva, a mítica maratona, agora com o portentoso Citroen ZX. Nas motos assistia-se à consagração de um jovem piloto, cheio de talento, chamado Stéphane Peterhansel. Para trás ficava a morte de Charles Cabanne, piloto de um camião de assistência da equipa Citroen, vítima mortal de um estúpido acidente nas «malditas» pistas do Niger.


Cerca de um década mais tarde, em 2002, estava eu a beber uma Sagres (contrabandeada pelos pescadores portugueses que fainam na costa mauritana) na esplanada do hotel Mercure, em Nouakchott, quando alguém se aproximou e me disse, quase em segredo, que o director do hotel queria falar comigo.

-Comigo?

Assenti e, quando entrei no escritório, cumprimentei-o que, com um sorriso jovial, exclamou: - é mesmo você! Não me reconhece?

Encolhi os ombros e sorri. O director apontou para uma moldura pendurada na parede, ao lado da foto do Pescarolo. Estremeci. O meu colete!

-Aziz! Exclamei com os olhos «cheios de mar».

- Sim, sou o Aziz Akar! Lembra-se de mim? Eu estava do outro lado e passei as buganvílias para falar consigo, recorda-se?



Texto e foto: Manolo

As minhas botas


As minhas botas são «umas» Camel Guatemala. Modelo que pouco tem a ver com a filosofia actual da marca, aliás, que não me interessa sequer abordar, nem tem nada a ver com esta história.

O que realmente vos quero transmitir é que tenho, confesso, uma relação mais ou menos adventícia com as minhas botas. Uma paixão pode-se transformar em amor ou não, mas mesmo que perca a sua chama flamejante, resta quase sempre uma grande amizade, cumplicidade, sentido de protecção intrínseco, é o que se passa com as minhas botas.


Há anos que estas botas me suportam, me guiam e protegem. Hoje, olho para elas e vejo-as gastas, a sola perdeu a maioria do rasto, o couro apresenta alguns danos irreparáveis, cortes e raspões, «rugas» desenhada pelo tempo e pela aventura que, apesar de tudo, lhes dão um charme incontornável. Estão mais bonitas do que no dia em que chegaram às minhas mãos, naquela enorme caixa.


O «Tio Avertino» um experiente sapateiro de Mafra já lhe deu uns «pontitos», adoptando uma atitude digna de um «cirurgião». Fez questão de me pôr a par da «operação» quantos pontos deu, a forma e porquê. " Tem aqui botas para mais uns aninhos". Fiquei aliviado.


Companheiras inseparáveis, recordo, sucintamente, alguns episódios que vivemos juntos, como aquele que protagonizamos na Lousã e que resultou na fractura de duas costelas. Ou então, aquele em 1998, quando fui vitima de um grave acidente na Libia, e já sob o efeito da morfina, apelei aos meus companheiros- que me despiam no hospital - que não me perdessem as botas. Recordo que um deles comentou: "... este gajo está todo partido e está preocupado com a m...das botas". Ou então ainda, quando fui ao Rali do Dubai e a Alitalia, inexplicavelmente, perdeu a minha bagagem. Mais de uma semana sem saber do meu saco, mais de uma semana que vivi com a agonia de nunca mais ver aquele par de botas.

Confesso que nunca as tratei como mereciam. Nunca lhes dei a atenção devida. Que me recorde, só uma ou duas vezes é que as lavei e espalhei «Dubbin» aquele creme especial para couros, que tão bem lhe faz.


Andarilhas, pápa-léguas, as minhas botas estiveram sempre comigo, nos quatro cantos do mundo. Em condições adversas e inópitas: alagadas; sobe neve; na lama; nas grandes altitudes; nos glaciares. Partilharam comigo os medos e os receios, as tristezas e as alegrias que as grandes expedições proporcionam. Já serviram de «caixa-forte» e de travesseiro ao mesmo tempo. Jogamos à bola quando estive no campo de refugiados da Frente Polisário, na Argélia, já corri seca e meca com elas.

Quando entro num hotel, olham-nas de soslaio, como se fossem marginais. Olhares oblíquos, preconceituosos e incrédulos que ignoro, até com uma certa vaidade.


Quando chego a casa, as minhas botas não podem entrar. " O lugar delas é na garagem" É na garagem que elas «dormem» entre os jerrykans e a caixa das cintas, onde esperam por mim uns «crocks» meio abixanados para a troca. Antes de correr a porta da garagem, lanço-lhes um último olhar. Talvez uma forma de agradecer...Elas, as minhas botas, parecem dizer: vai lá que nós ficamos bem".

Texto e foto: Manolo