sábado, 2 de junho de 2012

Algumas das embalagens mais famosas do mundo


Texto: manolo
Fotos: marcas


Uma multinacional ligada à embalagem encomendou-me um trabalho escrito sobre os produtos que devem às embalagens as suas identidades e a aceitação universal. Reconheço que foi um trabalho duro e que, a princípio, não me entusiasmou muito, sobretudo porque o estudo abrangeu mais de 250 marcas; mas depois entusiasmei-me e, como disse Fernando Pessoa num slogan que criou, precisamente para a Coca-Cola, e que nunca viria a ser utilizado: «primeiro estranha-se, depois entranha-se», fiz o trabalho com grande prazer.
Enquanto passo, confesso, por um período um bloqueio criativo, tal como acontece com o protagonista do livro «A Mão Morta – Um crime em Calcutá», de Paul Theroux, um livro que recomendo e que apresenta uma plêiade de personagens ricamente desenhadas num caso de difícil resolução. Trata-se de um fresco da Índia moderna sob a forma de um «thriller», um devaneio erótico e uma reflexão sobre a idade e a perda de energia criativa.
Enquanto passo, dizia eu, por um bloqueio criativo nesta floresta urbana de alheamento, talvez pelo excesso de discussão e de preocupação com temas técnicos ou pelas vicissitudes do dia-a-dia vida (mas temos que ganhar a vida, não é verdade?), não quis deixar de partilhar com os meus amigos algumas curiosidades retiradas desse estudo que fiz sobre algumas das marcas mais conhecidas que, de uma forma ou de outra, povoam o nosso subconsciente, e isto sem que tenha a veleidade de entrar em explicações de tipo psicanalítico.




Coca-Cola

Criada em 1886 por um farmacêutico e comercializada inicialmente como um produto medicinal, só passou a vender-se como refresco a partir de 1894, numa garrafa recta e muito fácil de imitar. Em 1915 a marca decidiu diferenciar-se com um novo design. A Root-Glass, empresa a quem foi entregue o trabalho, procurou inspiração nos ingredientes do refresco, porém, confundiu a coca com o cacau. Sem dar pelo erro, desenhou uma garrafa aflautada, em forma de grão de cacau e a empresa aceitou o protótipo. A embalagem mais famosa do mundo, a garrafa «contour», foi então, a partir daí, redesenhada várias vezes: hoje é uma referência no mundo do design, merecendo, por isso, grande destaque no Museu de Arte Moderna de Nova York.



Absolut Vodka

Ahus, uma pequena aldeia no sul da Suécia, é o ponto de origem de uma das vodkas mais vendidas do mundo. Lars Olsson Smith começou a comercializá-la a partir de 1879 e a agência Carlsson and Broman propôs uma solução inovadora: uma garrafa transparente, sem etiqueta, e com as letras gravadas para se poder ver através delas, igual às garrafas de jarabe medicinal da época. O designer diferenciou a garrafa ainda com uns toques prateados e a foto do fundador. Assim nascia um dos grandes desenhos da história, que conheceria o verdadeiro êxito a partir de 1980. Em 1985, Andy Warhol pediu para personalizar uma garrafa da «Absolut Vodka» e, atrás dele, centenas de artistas desenharam anúncios para a marca.



Toblerone

O chocolate suíço mundialmente conhecido pela sua forma de prisma com base triangular foi criado em Berna por Theodor Tobler e seu primo Emil Baumann e começou a comercializar-se em 1908. Diversas lendas tentam explicar a sua origem, embora exista uma que sustenta que a forma do chocolate reproduz o monte Matterhorn, nos Alpes suíços; outra teoria defende que Tobler se inspirou nas bailarinas do Folies Bergere, de Paris, alinhadas em forma de pirâmide; uma terceira hipótese assegura que o chocolateiro elegeu a pirâmide como símbolo maçónico. Com os anos a sua embalagem exibiu águias, ursos e bandeiras mas nunca perdeu a forma de prisma que a converteu num caso único de sucesso.


Chanel n.º 5

A sua embalagem e aroma converteram-no no perfume mais famoso da história, imortalizado por Marilyn Monroe quando disse: «Para dormir, só me visto com duas gotas de Chanel n.º 5». A sua história remonta ao ano de 1920 quando Coco Chanel, de férias para na Côte d’Azur, ouviu falar de um perfumista, Ernest Beaux. Da conversa que tiveram resultou uma encomenda de uma nova fragrância, tendo Beaux criado 10 amostras de que ela escolheu apenas 5. Após verificar o êxito do perfume, ela mesmo se encarregaria de criar uma embalagem intemporal que reflectiria a sóbria elegância de «Chanel n.º 5».



Marlboro

Em 1924 Philip Morris criou a marca «Marlboro» a partir do nome da rua de Nova Jersey onde tinha a sua fábrica. Tratava-se de cigarros com filtro, originalmente para um público feminino, pelo que até 1954 a empresa nunca dirigiu a sua publicidade para o publico masculino. Foi a campanha idealizada por Leo Burnett e protagonizada por um «cowboy», com o seu cavalo e o seu cigarrito ao canto da boca, que popularizaria a marca e a levaria à posição de líder de vendas, convertendo o seu logótipo num dos mais reconhecidos internacionalmente. O clássico maço encarnado e branco foi uma das embalagens mais conhecidas e universais do século XX. Já agora, se fuma, deixe-se disso.



Campari

Gaspare Campari inventou, em 1860, um novo licor chamado «Rosa Campari». Uma infusão de ervas, plantas aromáticas e frutas maceradas em álcool e água. Continuava assim uma tradição herdada dos monges europeus do século XVI, que fabricavam infusões para purgar o corpo e a alma, diziam eles. A bebida foi lançada comercialmente no café Campari, em Milão, propriedade do criador do aperitivo. Com os anos tornou-se uma das bebidas mais conhecidas do século XX, mais famosa mundialmente do que o «Martini», graças, em parte, aos cartazes publicitários de Marcello Nizzolli e à forma da garrafa, uma obra do escultor futurista Fortunato Depero, criada em 1932.




Jack Daniel’s


Jack Daniel aperfeiçoou a elaboração do whisky em 1866 mediante o processo de suavização com carvão vegetal, uma inovação que outorgaria à sua marca uma suavidade e um paladar incomparáveis. Em 1904 denominou-o «Whisky Tenessee Old No. 7» e usou uma garrafa quadrada e um rótulo preto. Na feira mundial do Missouri foi galardoado com a medalha de ouro e considerado o melhor whisky do mundo (opiniões não se discutem). Desde então o rótulo do Jack Daniel’s conservou sempre o seu famoso número 7, que alguns atribuem à sétima fórmula e outros a uma simples anotação do chefe do armazém.



Heineken

A história da Heineken remonta a 1592, quando a viúva de um cervejeiro holandês decidiu abrir a cervejaria Haystack, no coração de Amesterdão. Trezentos anos depois, Gerard Adriaan Heineken, de 22 anos, comprava o estabelecimento e começava a vender a sua cerveja do tipo Pilsen. Em 1884 registou a marca Heineken com o seu rótulo verde e encarregou um laboratório de estudar a fórmula perfeita. A equipa de investigadores descobriu assim a levedura A, um marco importante na história da cerveja. Com a lei seca a «Heineken» passou a ser a cerveja de importação mais consumida nos Estados Unidos, tendo, nesse momento, sido introduzida a famosa garrafa verde.




Lucky Strike

Decorria o ano de 1871 quando o doutor R. A. Patterson, da Virginia, criou a sua empresa de tabaco para mascar, tendo pensado que seria uma boa ideia associá-la aos prospectores de ouro californianos. Por isso decidiu chamar-lhe «Lucky Strike», o «golpe de sorte». Em 1905 a American Tobacco Company adquiriu a companhia de Patterson e, em 1926, apresentou o «Lucky Strike» com uma nova embalagem: uma caixa verde de cigarros sem filtro. Anos mais tarde o famoso desenhador industrial Raymond Loewy mudou a antiga imagem da embalagem, redesenhando o logótipo, tendo a mesma passado a ser completamente branca. O seu objectivo era reduzir custos, modernizar a etiqueta e torná-la mais atractiva entre as mulheres fumadoras.










sábado, 12 de maio de 2012

A Máscara




texto e fotos: Manolo

O senhor Fernando não queria acreditar, mas foi o chefe da polícia que o aconselhou a chamar o feiticeiro. «Ele tem poderes que mais ninguém tem». Palavra de autoridade!

O proprietário da Pousada do Saltinho estava perplexo: « o que é que eu vou fazer agora?», dizia numa expressão meio de lamento meio de incredulidade. «Desapareceu uma máquina de cortar azulejos, chamo a polícia e dizem-me para procurar o feiticeiro, ora esta!»

- Oh Xô Fernando, chame lá o homem, vá.
- Tá a brincar comigo? Você tem cada uma...que nem lembrava ao diabo.
-Chame-o lá, talvez o homem acerte. E se ele descobrir o que aconteceu à máquina...,afinal, não é isso que você quer?


.
O Sr. Fernando bebeu o último gole da Cergal, ajustou os calções à cintura, num gesto militar, sem deixar de olhar fixamente para a antiga ponte Craveiro Lopes que liga as duas margens do rio Curoval, suspirou, e, em seguida, com o semblante carregado, ordenou que fossem à tabanca (aldeia) chamar o feiticeiro.


Na Guiné-Bissau existem muitas crenças relacionadas com bruxaria e com outros mitos. Acredita-se, por exemplo, nos homens-lagarto e nos homens-lobo, os primeiros que se transformam em lagartos quando entram dentro de água, os segundos em lobos, de noite, para «fazerem mal às pessoas».
Os feiticeiros têm muito poder, são curandeiros e, na maioria dos casos, visionários.

O entardecer despontava triste no Saltinho, não era para menos, suspeitava-se de alguém. A máquina de cortar os azulejos tinha desaparecido, os trabalhadores das obras e os serviçais da pousada, preocupados e nervosos, andavam de um lado para o outro. Os macacos alvoraçados «não eram um bom presságio», enquanto os lagartos, às centenas, pareciam disputar entre si qual deles batia o recorde das flexões.



Do outro lado da estrada agigantava-se uma queimada, de onde surgiu o feiticeiro. Depois de uma troca de palavras em crioulo, só percebi o policia dizer: «é um problema».

O feiticeiro é um homem de estatura média, sisudo, carapinha branca, veste uma túnica preta até aos pés descalços e trás na mão uma saca de pano, que se agita como um fantasma, como se tivesse un duende lá dentro.
 Manda reunir todos os trabalhadores que se posicionam ao seu redor, formando uma meia-lua. Tira da saca um galinha preta e o que parece ser uma máscara e, ao meu lado, o chefe da polícia sussurra-me: «só ele é que tem esta máscara, foi um espírito que lha enviou».


O feiticeiro pede que matem a galinha preta. No meio daquele silêncio «ensurdecedor», ouve-se com clareza o som do corte fatal e completo no pescoço da pobre ave. O sangue espicha, recuo rapidamente e só me apercebo de que o feiticeiro já tem a máscara quando leva as mãos ensanguentadas junto à cara, como se fosse um espelho e diz: «já sei quem roubou o apetrecho».


Reconheço a máscara, que impressiona pelo seu intenso cromatismo. Pertence aos Woyo, uma tribo que vive na África Ocidental, junto ao estuário do rio Zaire, no Congo e em Cabinda.
No século XV o seu primitivo reino era conhecido por Ngoyo. As máscaras deste povo são de madeira, pintadas de cores intensas, por vezes sobre um fundo branco, outras vezes decoradas com objectos sagrados -nkissi -, e têm significados simbólicos; são máscaras rituais por vezes usadas nos cerimoniais Ndunga. Esta máscara, oriunda de artesãos angolanos de Cabinda, têm um aspecto pouco pacífico, mostra uma boca com dentes pequenos e afiados, resultantes do costume dos Woyo e do Congo limarem os dentes. O seu expressionismo convida-nos a nela ver-mos tudo.

A que faz parte da minha colecção foi-me oferecida por Konstatin Komkov, amigo e credenciado jornalista russo de todo-o-terreno, que viveu cerca de dois anos em Angola.



Entretanto, o feiticeiro manda abrir um buraco na terra para enterrar a galinha e, ao lado, uma cova para enterrar vivo - sim, disse vivo -, o culpado, se entretanto não se acusar antes dos «coveiros» terminarem o trabalho.
Um silêncio tenebroso apodera-se dos presentes e só se ouve o som das enxadas a castigar a terra, a castigar a alma. De repente, um moço dá um passo em frente e acusa-se: «foi eu patrão».
O chefe da policia cochicha-me ao ouvido: «a máscara é poderosa, tem o poder dos espíritos, eu não lhe disse».


Mais tarde aproximo-me do feiticeiro, apresento-me, gabo-lhe a eficácia da sua psicologia e, com muito cuidado e sem querer ferir sugestibilidades, pergunto-lhe de onde provêm a sua máscara.
«A máscara? Comprei na internet, quer uma? quer o site?».




 


quinta-feira, 10 de maio de 2012



Esperanza Spalding


Esperanza Spalding é norte-americana e tem 26 anos. Já passou, pelo menos, duas vezes por Portugal. Fui ao seu concerto no Coliseu de Lisboa e fiquei deslumbrado com esta contrabaixista de excepção e dona de uma voz doce e ponderosa. É viciante, garanto-vos!  





Jane Birkin



A encantadora Jane Birkin é a tal “menina” que parece sempre destinada a ser lembrada pelo famoso “Je T’aime Moi non Plus” um dueto notoriamente erótico  com Serge Gainsbourg, o grande amor da sua vida. Vivia-se a “ressaca” de glamour do Maio de 68.


Esta conotação é mais do que injusta e a prová-lo, aconselho, entre outros, o álbum “Arabesque”. Um álbum intimista mas com uma força notável. Acompanhada por músicos argelinos, Jane, pega nas canções de Gainsbourg e embeleza-as, com uma mistura fina de ritmos e harmonias africanas. O violino de Djamel Benyelles (enorme músico) mexe com as nossas emoções mais intrínsecas.

Pegar nas canções de um “monstro” da criatividade é uma poderosa experiência que muitas vezes pode dar errado. Assisti ao concerto no auditório da CGD e garanto que o resultado é sublime.




África Express Presents...

África Express, é uma coleção de música africana em associação com músicos ocidentais: Bjork, Franz Ferdinand, Elvis Costello, Massive Attack, Brown VV, Fatboy Slim e Damon Albarn, tocada por alguns dos artistas mais interessante músicos do continente africano.
Logo na primeira faixa encontramos o J’taime (sex machine), uma autentica bomba musical, interpretada pelos Staff Benda Bilili, irrequieta banda de paraplégicos, que há dois anos levou o publico ao rubro no festival “Músicas do Mundo”, em Sines.
A propósito, Damon Albarn disse: “Quando estamos em África esta música sai do chão. É inevitável, está em toda a parte, e as pessoas são muito generosas em partilhá-la, têm orgulho nisso”.


Hindi Zahra


Hindi, nasceu em Marrocos em 1979 e radicou-se em França desde 1993. A sua música é uma mistura de jazz, ritmos africanos, reggae e muita alma. A música da Hindi é o que críticos anglo-saxónicos gostam de catalogar de “World music”. Ela canta em inglês, francês e berbere, tem uma voz forte e sensual. “Handmade” é o seu primeiro álbum e é uma extravagância. Ouvia-a ao vivo no MusicBox e confirma-se: a rapariga encanta! Muito bom, muito bom... 
O You Tube está cheio de apresentações ao vivo e acústicas fabulosas. A não perder!




Em Sines, o FMM - Festival “Músicas do Mundo” já tem datas marcadas:
19,20 e 21 de Julho
26,27 e 28 de Julho
fmm.com.pt  A não perder!


terça-feira, 8 de maio de 2012

“Tassili” o novo álbum dos TINARIWEN é simplesmente FABULOSO!







Por Manolo


No sudeste da Argélia, existe um vasto planalto chamado Tassili N’Ajjer. É perto da fronteira com a Líbia e abrange cerca de 45.000 quilómetros quadrados. Na falda sul do planalto fica situada uma pequena cidade chamada Djanet e foi aí, no deserto rochoso, numa tenda, perto deste lugar que os TINARIWEN gravaram o seu quinto álbum.Inicialmente o grupo queria gravar o disco no norte do Mali, mas a situação de conflito inviabilizou este objectivo.



O novo álbum dos TINARIWEN atravessa, de novo, emoções complexas sobre o povo Tamashek. Desde o primeiro álbum que este grupo musical genuinamente Touareg aborda com coragem temas relacionados com a vida do seu povo, contra grupos extremistas, religiosos fundamentalistas e outros interesses que não deixam a paz “beber” o chá da amizade, na região.



“Amigo, o que tens a dizer sobre estes tempos de sofrimento que estamos a viver?”. A música dos TINARIWEN chora as pessoas que são obrigadas a desistir da vida nômada do deserto. Todas estas emoções atravessam o novo álbum. Um álbum acústico, apoiado pelo jogo rítmico de pequeno tambores e palmas.  




Para este álbum, os TINARIWEN convidaram alguns amigos. Nels Cline, o prodigioso guitarrista de Los Angeles contribui com a sua guitarra no ambiente de abertura “Imidiwan ma Tennam” . Dois membros dos Dirty Dozen (New Orleans) adicionam ao tema “Ya Messinagt” um peculiar e áspera textura sonora. Kyp Malone e Tunde Adebimpe, dos “TV on Radio”, banda avant-garde de indie-rock, formada em Nova Iorque, em 2002, deslocaram-se ao local da gravação no deserto e deram o seu contributo, acrescentando as suas vozes e algumas harmonias subtis.



A participação destes músicos neste disco parece estranho, no entanto, é uma demonstração de confiança que a banda tem na integridade e singularidade do seu som, e também um reflexo da boa aceitação que esta banda Touareg teve nos Estados Unidos, onde recentemente terminou uma digressão.



TINARIWEN é uma banda que nasceu, vive e canta o deserto. “Tassili” é um álbum fabuloso! Oiça e deixe aqui a sua opinião.  Recomenda-se.

www.tinariwen.com



quarta-feira, 25 de abril de 2012

Passagem de nível sem Anjo da Guarda



Texto e fotos: Manolo


Olá amigão.


Já estou há dois dias em Zouérat. Eu sei, eu sei...estive alguns dias sem dar noticias, mas não te preocupes, estou protegida pelo meu anjo Gabriel, o meu anjo-da-guarda. Lembras-te de Sarajevo? Andei quase 15 dias sem poder dar noticias.Aqui já passa da meia-noite, está imenso calor e um luar enorme que parece eterno. Zouérat é uma pequena cidade mineira e todos, mas mesmo todos, já sabem que cá estou. Agora, enquanto te envio este e-mail, neste pequeno alpendre, sou vista pelos habitantes locais, provavelmente, como uma ave de arribação. Ao principio, confesso, era uma situação constrangedora, mas agora retribuo com um sorriso, são simpáticos.Finalmente, amanhã de manhã cedo, encontro-me com Heiba Salama, o guia que me levará por entre terras de ninguém até aos territórios do povo sarauí. Estou com esperança de conseguir uma entrevista com um dos seus líderes. Com um pouco de sorte, dentro de dois ou três dias envio-te uma peça daquelas que tu gostas, e claro, para calar o «boss» por causa dos custos, não é? Por falar no «manda-chuva», continua zangado com o mundo ou faz intervalos de vez em quando? Claro, só pode ser assim. Realmente, só tu tens pachorra para o aturar. Mas não é nada disto que te queria falar. Se estou a roubar tempo ao sono, e enquanto te escrevo já vou no quarto chá de menta, é porque te quero contar uma coisa fabulosa que se passou comigo ontem à noite.





Depois do jantar fui dar uma volta pela cidade ( aqui não se consegue adormecer antes das duas da manhã), contemplava o pouco que há em meu redor e pensava: aqui dá-se importância às pequenas coisas da vida, coisas que no nosso mundo ocidental nos passam completamente despercebidas. Coisas simples, muito simples, e estava eu a reflectir nisto, quando à minha frente surgiu um miudo , talvez com dezasseis, dezassete anos, alto, com uma túnica branca como a neve e um chech a cobrir-lhe a cabeça, donde faiscavam uns olhos verdes (Meu Deus, que olhos) que me perguntou, num francês doce, se podia saber o meu nome. Fiquei paralisada, mais pela surpresa do que pela candura - imagina a cena - sem deixar de me olhar com aquelas duas esmeraldas hipnotizadoras, aqueles dois oceanos; de seguida retorquiu: - é secreto?- Secreto? Por que raio o meu nome havia de ser secreto? Imaginei logo que fosse para os apanhados: o «Apolo imberbe» e a quarentona. - Laura. Respondi-lhe de forma neutra, mas ansiosa por uma resposta. - Laauuraa...Repetiu o meu nome de tal forma, com um glamour tão intenso que só pude baixar os olhos. Nos segundos que se seguiram reuni de emergência com a minha consciência. Estava feliz, naquele momento era feliz, mesmo sabendo que ali estava porque o exército marroquino atacara o povo sarauí com gás napalm e fósforo branco na malfadada «marcha verde».


Aqueles olhos verdes mostravam tanta atitude, que não consegui negar-me a passear com ele pela cidade. Era já suficientemente «adulto» para não me acusarem de pedofilia, por outro lado, ainda era bastante jovem para que se pensasse numa «aventura» com o rapaz. Provavelmente a sua mãe não gostaria que uma quarentona sem escrúpulos lhe levasse o filho para a cama. Uma mulher que podia ser sua mãe! Bolas, mas o rapaz tinha direito a esta experiência de vida e eu também.

Cada vez parecia estar mais calor, e a cada segundo que passava aumentava o meu desassossego. Sabes como por vezes sou tão indecisa, imagina como me sentia. Há coisas nem sempre fáceis na vida e, seduzir um jovem, talvez inexperiente, é uma delas; mas por outro lado, qualquer mulher, mesmo uma esquerdista como eu, gosta de ser tratada como uma princesa.

Convidou-me para passear pelas dunas de jipe, sabes, num daqueles clássicos que tu me costumas falar. Toyota? Land Rover? Não sei, mas ele conduzia com estilo. Navegava naquele mar de areia com suavidade, enquanto o luar nos banhava como se fossem holofotes da ribalta. Aqueles olhos verdes, aquele «Adónis», pelo menos por uma noite, era o homem dos meus sonhos. Se este rapaz queria o meu corpo, já há muito que era dele. Parou o jipe, pegou-me na mão, o resto não te conto...

Amigão estou feliz. Dentro de dias dou noticias. Quando chegar vamos àquele restaurante do Bairro Alto, ai como é que se chama? Depois dizes-me. Obrigado pela tua amizade. Laura.


Um dia depois chegou à nossa redacção, o seguinte e-mail:





COMUNICADO





Na manhã de hoje sairam de Zouérat dois jipes do exército mauritano, comandados pelo Tenente Moussa Ibraim, num patrulhamento de rotina. Junto ao caminho-de-ferro, perto da passagem de nível, encontraram um jipe alvo de um ataque e parcialmente destruído. Dentro do veículo encontrou-se o cadáver de um homem chamado Heiba Salama, reconhecido guia da Frente Polisário. A uns metros de distãncia, no chão, o cadáver de uma mulher com passaporte português e carteira de jornalista, de nome Laura Amares Machado. Os cadáveres e alguns objectos pessoais foram trasladados para o aquartelamento da companhia de Zouérat, até se receberem instruções precisas do batalhão.

Alá nos proteja.


Capitão Ahmed Hassan


























segunda-feira, 16 de abril de 2012

A menina que queria voar



 texto e fotos: manolo


«World Food Programme», o programa alimentar das Nações Unidas em Moçambique, tem os armazéns centrais no Chimoio, no Caia, em Quelimane e em Tete. A partir daqui os produtos são distribuídos para mais 490 armazéns secundários que se encontram nas aldeias, junto às populações, e que são dirigidos por voluntários das ONG e das organizações religiosas e estatais.

«Anda cá torradinha, eu sou teu amigo. Comigo tu e os teus irmãos não passam fome, tens é que ser meiguinha... e ficar caladinha».
FdP é voluntário do «World Food Programme», um «benfeitor» condecorado pelos serviços «humanitários» prestados em várias regiões de África. É um pequeno deus que tem na sua mão o poder de decidir quem come e quem não come, enquanto um governador local aconselha as populações a comerem frutos silvestres e a aumentar as orações.

Barika (que significa a afortunada, a feliz) perdeu os pais na guerra civil de Moçambique. Com doze anos apenas viu-se confrontada com a sua sobrevivência e com a dos quatro irmãos mais pequeninos que a tratam por «mana-mãe». Com uma vida que mais lhe parece uma câmara de tortura, entrega-se aos desejos lascivos de FdP como um cadáver que desce as águas sombrias das profundezas do mar. O corpo do homem exala um cheiro fétido, como se tivesse sobre si uma posta de carne putrefacta mas viva, branca, gordurosa, viciada, não compreendendo porque «foi condenada e punida sem culpa formada», apenas por ter sobrevivido. Quem impõe esta vida aos inocentes? Na luta pelo sustento havia que optar entre entregar o seu corpo ou deixar-se passar fome a si e aos seus irmãos, tornando-se evidente a cada dia que passava que nenhuma das opções era vencedora. FdP exige que Barika seja «cúmplice» de um pacto de silêncio, precisamente o silêncio do preço da sua sobrevivência e dos seus irmãos pequenos.

Tinha passado a noite em claro, acordada havia demasiadas horas, e o seu corpo começava a acusar a fadiga. Aquele pensamento de uma alma ténue como um fio de água que brota de uma fonte corria-lhe constantemente.
O dia amanhecia na aldeia, as mulheres varriam as eiras, outras, as mais velhas, arrastavam-se até ao posto de distribuição na esperança de receber alguma dádiva de milho ou de ervilha seca, embora soubessem de antemão que não havia esperança, que o camião não chegava durante a noite silencioso, como um fantasma; e os seus corpos secos, cheios dos demónios da fome, não as deixavam dormir.

Barika olhava para longe, para muito longe, para um vazio tão frio como o mais frio metal. O seu irmão mais pequenino, Bahir (que significa brilhante), perguntou-lhe:
– Mana-mãe, estás triste?
Barika, disfarçando as lágrimas, respondeu:
– Não meu querido, estou só a pensar.
– A pensar em quê?
Barika tentou sorrir, passou-lhe a mão pela cabeça, deu-lhe um beijo e ao mesmo tempo disse-lhe:
– Gostava de voar.
O menino deu uma gargalhada e, meio embaraçado meio admirado com o extravagante desejo da irmã mais velha, respondeu-lhe:
– Gostavas de voar como o Atobá? E levavas-me contigo?

Antes que respondesse, um moço, a mando de FdP, chamou Barika ao posto. Compungida, ergueu-se como que segurando o ventre, beijou Bahir e seguiu de cabeça baixa até ao posto de distribuição dizendo para si mesma:
«Não sei que dor é esta que me assola. Não sei se é uma, se são muitas. A minha vida parece um molho de serpentinas desgarradas ao vento, bocados de vida à deriva, entre corpos sem alma, indiferentes, máscaras, mortos vivos. Sou uma alma que se esvazia cada vez mais num rumo nem sentido.»

FdP aguardava Barika à porta do posto, com um sorriso, de cerveja na mão. Chupou pela última vez o cigarro e meteu-se para dentro. Quando ele chegou à porta do posto já ele estava sentado na cadeira giratória de madeira, ligeiramente afastada da secretária, com um sorriso que exalava das orbitas uma mistura de poder e de cinismo, de maldade e de vício, um olhar a que Barika nunca se habituara.

O posto era um pequeno cubículo dentro de um armazém estreito mas comprido, uma obra que ficara dos tempos coloniais; tinha uma pequena porta independente ao lado do grande portão de ferro onde os camiões do «WFP», das Nações Unidas, descarregavam, uma vez por mês, toneladas de ervilha seca, milho, farinha, feijão e açúcar para servir uma população numerosa, sem recursos e muito vulnerável (na sua maioria pessoas infectadas com o vírus HIV).

O cubículo era sombrio, tinha uma escrivaninha com uma esteira rolante atafulhada de papéis. Em cima um candeeiro de secretária, em latão, dos anos 50, pilhas de papéis e vários cinzeiros repletos de beatas; um pouco mais ao lado um sofá gasto pelo tempo, torturado por pilhas de papéis e duas almofadas que mais pareciam duas carteirinhas de chá depois de usadas. Na parede um relógio-carrilhão da marca Herweg, parado, coberto de uma camada fina de pó, como um véu de catedral apoiado numa teia de aranha.

De pernas abertas e a balancear-se de um lado para o outro, diz-lhe: «Entra, não tenhas medo, não te faço mal». Barika aproximou-se e, sem levantar os olhos do chão, ficou imóvel como uma estátua. «Amanhã vamos receber um camião de alimentos e não me vou esquecer de ser bem generoso para ti.» Aproximou-se dela arrastando a cadeira cujas rodas chiaram estridentemente, assustando as sete vidas de um gato que se encontrava por debaixo da secretária. Pegou-lhe nos braços e obrigou-a a ajoelhar-se à sua frente. Sem grande resistência Barika acedeu.

Um rodopio de sentimentos contraditórios, um fluxo e refluxo de ódio invadia-lhe a cabeça como se tivesse bebido uma poção psicotrópica, como se se encontrasse numa encruzilhada onde nenhum dos caminhos faz sentido culminando num precipício sem fim. FdP, ao mesmo tempo que lhe cobra a sobrevivência, com uma mão acaricia-lhe o longo pescoço e com a outra massaja a sua própria zona genital e repete-lhe: «Torradinha, amanhã vais receber muita comida para ti e para os teus irmãos, vais ser meiguinha, não vais?» Ao mesmo tempo desaperta a braguilha e expõe o pénis erecto, dando um impulso ao corpo como se fosse uma investida. Barika, ajoelhada, mantém-se imóvel. FdP, sem sorrir, sussurra-lhe: «Vá lá, pensa nos teus irmãos». A alma da jovem consome-se em autocombustão lenta. De repente, como uma faísca, uma chama espontânea, como se sarasse todas as cicatrizes, apoderou-se dela como uma maldição. Levanta a cabeça, sorri, passa muito lentamente a língua pelos lábios, grandes e bem desenhados, com a mão agarra o pénis, pressiona o corpo cavernoso, a pressão descontrai e devolve o sorriso ao abusador que fecha os olhos e se estende na cadeira lançando a cabeça para trás. Barika observa-lhe a excitação com um certo prazer no ritual, e, num gesto rápido, conciso, como se fosse um relâmpago, decepa-o! Com um punhal ferrugento que não brilha ao sol, separa-lhe o pénis totalmente do corpo. Ele, como um monstro ferido corre para o exterior aos gritos ensurdecedores, numa agonia estridente. Barika manteve-se de joelhos e deixou cair o punhal na poça de sangue.

O abusador é levado para a cidade da Beira, de onde segue de helicóptero para a África do Sul, onde uma equipa de cirurgiões vai tentar repor o que perdera.
Barika é encarcerada num velho barracão de estilo colonial, redondo como um moinho e com uma porta de grades de ferro que fica de frente para aldeia, enquanto aguarda a transferência para a prisão da cidade da Beira; muito provavelmente este espaço terá servido para guardar palha, cordas e outros pequenos utensílios na época colonial portuguesa. Dos autos da detenção consta que a jovem atacou de má-fé o digno voluntário das Nações Unidas para lhe extorquir dinheiro e alimentos.
Acostumados ao assistencialismo das ONG, as populações vêem em qualquer estrangeiro uma hipótese de sobrevivência.

Barika é alvo de rituais de maldição por parte da população da aldeia, que teme que as dádivas de alimentos sejam interrompidas pelo hediondo acto da jovem. Apenas os quatros irmãos pequenos se juntam à grade chorosos: «Mana-mãe, vem connosco». Barika não chora e, na sua ingenuidade roubada, percebe que chegou à encruzilhada dos caminhos sem sentido.

Durante a noite olha para a lua e anseia pelo halo de um anjo que lhe diga que o seu mundo não está agrafado à injustiça. Barika não chora, já desaprendeu de chorar, deseja esconder-se nas trevas, talvez as trevas sejam a única luz.

O dia mal tinha acabado de nascer e o pequeno Bahir correu para o velho barraco. Agarrou-se às grandes e gritou: «Mana-mãe, mana-mãe.» A mana-mãe não lhe respondia e apenas conseguia ver os pés suspensos da irmã. O corpo balançava, lentamente, enforcado na corda presa na asna do barracão. O pequeno Bahir, sem perceber, ansioso e com a respiração ofegante gritava: A mana-mãe já sabe voar como o Atobá, já sabe voar, leva-me contigo mana-mãe!

Nota do autor: A independência de Moçambique, a 25 de Junho de 1975, não representou o início de uma era de prosperidade mas de um conflito aberto que degenerou rapidamente numa catástrofe: uma longa guerra civil que fez mais de um milhão de mortos e quatro milhões de deslocados. A guerra civil em Moçambique, ou guerra de desestabilização, durou 16 anos, entre 1976 e 1992, tendo tido como resultado um país devastado e uma população esfomeada e doente, vivendo das ajudas distribuídas pela comunidade internacional.

Mais de 450.000 crianças de idade inferior aos 15 anos foram mortas, 7.000 ficaram deficientes devido às minas, mais de 250.000 ficaram órfãs e à mercê do acaso, mais de 50.000 pessoas foram amputadas. As crianças foram submetidas a repetidas experiências traumáticas: ameaças de morte, vítimas de terror, agressões, processos sistemáticos de desumanização, fome, sede, má nutrição, exploração, abuso sexual e envolvimento em actividades militares.

A acção das Nações Unidas, através do «World Food Programme», tem sido a tábua de salvação para muitos moçambicanos, porém, continuam a sofrer na pele, sobretudo as crianças, a crueldade e os abusos, incluindo os sexuais, por parte de quem supostamente estará no terreno para os ajudar.
Esta história, baseada em factos reais, é apenas um dos muitos relatos de abusos perpetrados por voluntários sem escrúpulos, que se introduzem nas ONG apenas para satisfazer os seus mais perversos desejos. Os nomes são, naturalmente, fictícios e o autor escolheu as iniciais FdP para o abusador, que o leitor, se assim entender, pode ler: F… da P…

sábado, 7 de abril de 2012

Tuaregues: quem são os homens que dividiram o Mali




Eles querem ser chamados tamasheq, o nome da sua língua, porque recusam ser os "abandonados por Deus". No Norte do Mali, já proclamaram uma nova pátria. Quem são os guerreiros de véu e turbante azul?


Referenciados pela primeira vez por Hérodoto, no século V. a.C., os nómadas do deserto têm uma cultura e uma identidade únicas.




Awazad



Situada nos vastos desertos do Sara e do Sahel, Awazad ou Azaouad é uma região na qual os tuaregues incluem o Norte do Mali (mas também o Norte do Níger e o Sul da Argélia). O Movimento Nacional para a Libertação do Azawad (MNLA) proclamou nesta sexta-feira um Estado independente após a rápida conquista ao exército maliano das cidades de Tombuctu, Kidal e Gao. Uma área que é supostamente um centro de tráfico de cocaína, Awazad foi cenário de várias rebeliões: em 1962-1964, em 1990-1995 e em 2007-2009. A revolta deste ano derrotou facilmente um exército, com poucas munições e muitos generais corruptos, incapaz de enfrentar milhares de antigos soldados e mercenários tuaregues que regressaram ao Mali bem treinados, financiados e armados, depois de terem servido Muammar Khadafi na Líbia, até à queda e morte do coronel em 2011. Obter o reconhecimento internacional será agora o objectivo da luta do secessionista ainda que "laico e democrático" MNLA. Mas tudo dependerá da sua vontade e capacidade de derrotar os radicais salafistas do Ansar Dine e da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), que querem islamizar todo o Mali.

Berbere


O termo "berbere" advirá do latim barbarus (bárbaro), mas os berberes tuaregues - cerca de um milhão - preferem chamar-se Imazighen (homens livres). Originalmente brancos do Mediterrâneo, foram-se misturando com as populações do Sara e do Sahel e, hoje, podem ser louros ou ruivos (nas montanhas Atlas de Marrocos) ou de pele negra (na região subsariana). Não é possível determinar como os tuaregues chegaram ao Norte de África, mas confirma-se que são um grupo berbere com a sua própria língua (Tamashek) e alfabeto (Tifinagh). Quem primeiro registou a existência destes nómadas terá sido Heródoto, no século V a.C., na Líbia. Guerreiros de espada (takoba), lança (allagh) e escudo (aghar), os tuaregues controlaram durante séculos as grandes rotas comerciais que atravessavam o Sara. Só em 1917 é que a Legião Francesa - depois de anos de combates e massacres - conseguiu "pacificar" os tuaregues. Findo o período colonial, nos anos 1960, o território dos nómadas foi artificialmente dividido por vários países independentes: Argélia, Burkina Faso, Líbia, Mali e Níger.

Charles de Foucauld

Descendente de cruzados e oriundo de uma família aristocrata e próspera, Charles Eugène de Foucauld nasceu em Estrasburgo em 1858. Aos 26 anos, depois de "uma vida de luxúria e aventuras amorosas" como geógrafo e oficial de cavalaria do Exército francês, deixou de ser agnóstico e tornou-se padre eremita. Em 1905, foi viver entre os tuaregues, na região argelina de Ahaggar. Recentemente beatificado pelo Vaticano, foi durante muito tempo olhado como "espião disfarçado de monge", mas todos lhe reconhecem, agora, a divulgação, local e internacional, da língua e cultura tuaregues. A 1 de Dezembro de 1916, salteadores atacaram o seu refúgio e um deles matou-o a tiro. O "irmão universal" morreu aos 58 anos, mas tem hoje 15 mil discípulos, entre eles a Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus, que chegou em 1939 a Portugal, onde as suas religiosas, que não são missionárias, vivem e trabalham com os mais pobres, em bairros degradados, fábricas ou prisões.


Dassine

Sultana do Deserto, Rainha do Amor ou Mensageira da Paz, é assim que os tuaregues reverenciam a sua grande poeta Dassine Oult Yemma. Dois versos que eles repetem: "A água murmura "Eu amo-te" quando toca os nossos lábios com o mais suave dos beijos"; "Que interessa esses véus sob os quais te escondes - eu afasto-os tal como o sol desvia as nuvens". A poesia ocupa um espaço fundamental na cultura tuaregue, e um tema recorrente é o dos corações destroçados. Na língua Tamasheq, a palavra "calor" (tuksé) deriva de "sofrimento". Veja-se este poema, composto em 1890: En ce jour que j"ai quitté Tella/ elle tenait une réunion galante pour les personnes présentes ; je suis parti/ l"âme brûlée de douleur, le cœur embrasé/ semblable à un tison enflammé/ sur lequel souffle le vent et qui brûle de tous côtés. / Je prie Dieu de me faire voire celle que j"aime/ pour que je ne meure pas ici de la douleur de son absence


Feudal


Os tuaregues mantêm um sistema hierárquico feudal de clãs (tawshet), que consiste num pequeno número de famílias nobres e tribos de marabus ("homens santos, com poderes de abençoar, proteger e curar, mesmo depois da morte"); uma maioria de vassalos e três "classes inferiores" de antigos escravos. Os iklan apascentam o gado, cozinham (a alimentação básica dos tuaregues é queijo e manteiga de cabra com tâmaras - a carne é limitada a ocasiões festivas) e fazem outras tarefas domésticas; os inaden são sobretudo artesãos e ferreiros; os harratin, de pele negra, trabalham nos campos onde se cultiva milho, centeio e trigo.

Islão

Muçulmanos mas não árabes, os tuaregues preservam rituais animistas, rezando a divindades do deserto, como pedras, água, fogo e montanhas. Na prática islâmica de lavar as mãos, a água, cada vez mais escassa, é substituída pela areia. No Norte do Mali, onde os tuaregues proclamaram agora um Estado independente, predomina a escola teológica maliquita do sufismo, corrente mística e tolerante da religião "revelada" a Maomé. 



Kel Tamasheq


Ainda que divididos em várias tribos e clãs, os tuaregues fazem questão de afirmar a sua identidade única chamando-se a si próprios Kel Tamasheq, ou "Os que falam Tamasheq". Há uma campanha em curso para que sejam designados como tamasheq e não tuaregues - termo cuja origem tem suscitado várias interpretações: uns alegam que provém do árabe Tawariq, com o significado de "abandonados por Deus"; outros ligam-no a Targa, em Fezzan, actual Líbia. Os tuaregues/tamasheq têm o seu próprio alfabeto, Tifinagh, composto por símbolos geométricos, um total de 24, na forma de linhas, pontos, círculos e formas. Este alfabeto escreve-se da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de cima para baixo ou de baixo para cima - por isso é de difícil leitura. A origem do Tifinagh é indefinida. Alguns sugerem que não há nada de implicitamente amazigh (língua berbere), mas os tuaregues insistem em que é indígena. Para eles, Tifinagh é um termo composto por "Tifi", que significa "descoberta", e pelo adjectivo possessivo "nnagh", com o significado de "nosso". Assim sendo, Tifinagh quererá dizer "a nossa descoberta". Outras teorias referem que o alfabeto provém do Egipto ou do Sul da Arábia; do grego ou do latim; dos cartagineses ou dos fenícios.

Mulheres

As mulheres tuaregues gozam de grande respeito e liberdade, participam nas decisões da família e da tribo, e podem manter relações com homens antes do casamento, rompendo a tradição ortodoxa islâmica. Um dos provérbios deste povo diz: "As mulheres e os homens são, uns e outros, para os olhos e para o coração; não apenas para a cama". São uma sociedade matrilínia (a liderança, a descendência e a herança são definidas pela linha da mãe), mas não matriarcal (o poder é detido pelos homens). São as mães que ensinam às filhas o alfabeto Tifinagh e arte de tocar o violino imzad - arte exclusiva das mulheres. Diz-se que, nos combates, os homens faziam tudo para demonstrar coragem, com medo que as noivas os privassem dos sons do imzad. O desejo de ouvir este instrumento incutia-lhes valentia e incitava-os a derrotar os inimigos.


Nómadas


Se inicialmente eram nómadas errantes do deserto, muitos tuaregues foram obrigados, para sobreviver, a render-se ao sedentarismo. Em todo o caso, muitos ainda vagueiam errantes em tendas móveis, um apertado círculo de 5 ou 6. Uma tenda é composta de 30 a 40 peles curtidas, tingidas de vermelho e cosidas umas às outras. As peles são suportadas por uma estrutura de estacas de madeira, fixadas ao solo. Cada tribo é governada por um chefe e uma assembleia de homens adultos. As tribos agrupam-se em três confederações, cada uma com um xeque e um conselho de responsáveis de clãs. As confederações, por seu turno, têm um líder máximo (amenokal) e um conselho de nobres. Entre as tribos mais importantes estão as de Kel Rhela, Dag Rhali, Issaqqamaren e Ait Laoin.

Oy ik?


Os tuaregues têm uma forma muito particular de cumprimentar os outros. No dialecto regional Air, por exemplo, começam por perguntar Oy ik? (Como está?), seguindo com Mani egiwan? (Como está a sua família?) e depois por Mani echeghel? (Como vai o seu trabalho?). A resposta mais educada a todas estas interpelações será Alkher ghas (Está tudo de boa saúde).


Sedução


Os tuaregues têm um ritual a que chamam "código de sedução". No silêncio do deserto, de manhã até ao meio-dia, antes do pôr-do-sol, ou à noite, sob um céu estrelado, juntam-se para tocar o violino imzad e cantar poemas. Depois de recolherem o leite dos rebanhos e antes de irem para a cama, os homens pedem às organizadoras destas reuniões sociais ou encontros românticos (djalsa) se os voltam a convidar. Para saberem, discretamente, a resposta das mulheres que querem conquistar, usam linguagem gestual. Desenhar um círculo na palma da mão de uma jovem e depois apontar para lá com o dedo indicador é uma declaração de amor. Se a jovem pega na mão direita do pretendente e com o seu indicador traça uma linha diagonal para a frente e depois para trás, isto significa: "Deixa o resto das pessoas e vem para junto de mim". Se ela traça a linha diagonal numa só direcção, a mensagem é: "Vai-te embora, e não voltes." Se um homem notar que a rapariga é disputada por um rival, tem de recuar. Se dois pretendentes gostam da mesma mulher, o mais novo deve ceder o lugar ao mais velho - excepto se a rapariga fizer a escolha contrária.


Tin Hinan


Venerada pelos tuaregues como a sua primeira Tamenokalt (rainha), Tin Hinan ainda hoje é designada, por eles, como "Mãe de todos nós". Dizem lendas que, viajando com a sua dama de companhia, Takamat, deixou Tafilalet, nas montanhas Atlas de Marrocos, para se instalar no território desértico de Hoggar ou Ahaggar, no Sul da Argélia. Aqui, não hesitando em recorrer às armas, Tin Hinan uniu vários clãs dispersos e fez deles uma "nação". O seu túmulo terá sido encontrado, em 1920, por arqueólogos, em Abalessa, na Argélia.

Véu

Entre os tuaregues, são os homens, e não as mulheres, que ocultam o rosto. Há três tipos de véu-turbante, com um comprimento que oscila entre os 3 e os 5 metros, deixa à vista apenas os olhos, cobrindo a cabeça, a testa, quase todo o nariz e a boca - "uma zona de poluição e de desrespeito se exposta perante outros". Assim, temos o tagelmoust ou alechcho (azul-índigo), hoje quase exclusivo das classes mais altas; o khent, que pode ser usado em todas as ocasiões e no dia-a-dia; e o agora mais comum echchach (branco, negro ou azul-escuro, de custo e qualidade inferior). Não há dados concretos sobre quando é que os tuaregues começaram a usar o tagelmoust, porque até 1920, segundo várias fontes, era mais visível o tekerheit, véu-turbante de lã branca e riscas de cor, originário da Líbia. Só os homens de classe elevada podem deixar escorregar o véu-turbante, e apenas os que fizeram a peregrinação a Meca o podem remover completamente. De um modo geral, os homens jamais o abandonam desde que o começam a usar aos 18 anos, início da idade adulta, nem mesmo quando dormem. A tinta que caracteriza a maioria dos tagelmoust não é diluída em água, um bem cada vez mais escasso, mas aplicada com pedras em tecido de algodão. A pressão emite partículas ligeiramente metálicas que depois se transferem do véu para o rosto - daí os tuaregues terem ganhado o cognome de "Homens Azuis". Símbolo de masculinidade, protecção contra as tempestades de areia e os "maus espíritos" - mas também, dizem, forma de impedir o inimigo de ler o pensamento -, o véu-turbante nunca é lavado e é usado até que se rasgue. As mulheres, por seu turno, depois de se casarem, apenas tapam o cabelo com um lenço (ekahei). Envergam saias rodadas e blusas bordadas de várias cores, colares e brincos de ouro e prata, e ostensiva maquilhagem que realça sensualidade dos olhos e da boca.

Fontes:The Tuareg of the Sahara (Bradshaw Foundation); Sahara Man: Travelling With the Tuareg, de Jeremy Keenan; Le Voile chez les Touareg (Revue de l"Occident musulman et de la Méditerranée); La Solitude du Poète Touareg (Dominique Casajuz, in: Sentiments doux-amers dans les musiques du monde); Association Sauver l"Imzad; Toumast Press